Ingressar numa crise é ter a certeza de aprender coisas novas. E reaprender outras que a gente já sabia mas que, de repente, passam a fazer toda a diferença. Pois é nessa mescla de novos e antigos aprendizados que os porta-vozes de empresas, organizações e governo estão se apoiando para dar conta do recado desde que a pandemia de Covid-19 mergulhou o planeta em incertezas, quarentena, uma crise sem fronteiras – e milhares de pedidos de entrevistas e declarações para tentar decifrar o que acontece.
Antes de avançar nesse tema, porém, é importante entender o que transforma alguém em um bom porta-voz – com ou sem novo coronavírus na pauta.
Depois de ajudar a preparar um incontável batalhão de mulheres e homens para essa função, continuo apostando que a resposta está na simplicidade de três Cs – conteúdo, conforto e conexão. (Um disclaimer necessário: é imprescindível contar com o C de carisma, sim, além de humildade, para reconhecer que abrir a boca não é exatamente o C de comunicar; é o que faz de Barack Obama, para usar um único e bom exemplo, aquele craque com C maiúsculo.)
Aos três Cs, portanto: o primeiro, conteúdo, é quase autoexplicativo. Quem tem domínio sobre o que fala, respeita o território das mensagens-chave, acredita na narrativa que entrega e ainda desfruta de legitimidade para tratar do tema tende sempre a se sair melhor. Essa é a base de tudo.
Sobre essa base, o conforto se traduz em um entorno amplo que vai do briefing detalhado à roupa adequada, passando pelo treino propriamente dito (o famoso media training). É o que permite ao porta-voz fugir do improviso, desviar das “cascas de banana” nas perguntas e, mais importante ainda, ficar concentrado apenas na sua atuação, sem ter de mirar outra coisa que não seja a narrativa. Quem já perdeu um raciocínio ao vivo e em cores imagina como isso pode derrubar um porta-voz.
Por fim, o C de conexão é que executa a mágica: com a ajuda de especialistas, bons porta-vozes desenvolvem habilidades naturais e incorporam a elas técnicas para engajar suas audiências. E como as audiências são diferentes, as técnicas também precisam ser – então eles treinam, aprendem e reaprendem permanentemente. Vale, aqui, o mantra: comunicação não é o que um diz, mas o que o outro entende. Se o outro não entende, não tem mágica – não engaja, ponto-final.
E aí acontece uma crise, e todo esse preparo passa a ser testado em condições extremas.
Começando pelo conteúdo. O que dizer quando ninguém sabe exatamente o que dizer? Primeiro aprendizado desta e de todas as crises: apenas o que se sabe até aquele exato momento, e mais nada. Comunicação em tempo de crise passa longe de exibir um filme de longa-metragem confuso e sem final definido. Melhor mostrar um único fotograma nítido de cada vez – porque o cenário muda, e fazer isso diminui a margem para os erros das previsões e dos achismos. É do job description do porta-voz acalmar as especulações, o pânico, o mercado, os ânimos e mostrar pelo menos algum controle da situação.
A contrapartida é ter de inverter a lição de não ser o ultraexposto – aquele porta-voz que está em todas, a toda hora, falando de qualquer assunto e que arrisca sua credibilidade, e a da sua empresa, com isso. Porque crise é o momento de aumentar a frequência das interações com cada público, garantindo a atualização de fatos e dados na mesma medida em que ocorrem.
O distanciamento social inédito das últimas semanas também acrescentou um novo aprendizado a muitos porta-vozes. De um dia para outro, as interações migraram quase todas para ambientes virtuais, e foi necessário fazer um mergulho (desconfortável) na tecnologia das chamadas de vídeo, seus apps, truques e funções. O porta-voz que ainda não havia incorporado essa realidade ao seu treino permanente pode ter ficado preso numa dobra do tempo, para sempre.
Porque, como se não bastasse ter que driblar as ferramentas digitais, agora é preciso entender que a linguagem delas é outra: alguém intermediado por uma tela desafia a própria capacidade de engajar quem quer que seja do outro lado. As pausas parecem ter outro tempo e a voz, outro tom. O rosto domina o campo visual, a expressão corporal desaparece, o áudio, a iluminação e o cenário ficam literalmente por conta da casa.
Ok, no mundo corporativo já estávamos bem acostumados com as calls, para os íntimos. E um videozinho aqui ou ali, gravado e com roteiro definido, ou uma incursão no press release eletrônico. Mas dar uma entrevista para um noticioso da TV, fazer a reunião de posicionamento com toda a empresa, participar de um debate estratégico para o negócio numa live ou mesmo fazer uma palestra inteiramente virtual já é outro departamento. Que veio para ficar – alguém ainda duvida? É mais barato, mais rápido e, com tempo e treino, será tão eficiente quanto.
Para usar uma imagem dos nossos (complicados) dias, tudo isso é mais ou menos como lavar as mãos – a gente até já sabia. Mas nessa crise, para fazer mesmo a diferença, descobriu que precisava (re)aprender.