Liderança
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Revolucionando a liderança global: como transformar narrativas culturais para construir conexões duradouras

Rússia vs. Ucrânia, empresas globais fracassando, conflitos pessoais: o que têm em comum? Narrativas não questionadas. A chave para paz e negócios está em ressignificar as histórias que guiam nações, organizações e pessoas
Angelina Bejgrowicz é autora do livro Inteligência Cultural: Desenvolvendo Competências Globais para o Sucesso Internacional. Poliglota fluente em seis idiomas, é professora na Fundação Dom Cabral e campeã nacional de oratória pela organização Toastmasters Brasil.

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Vivemos em um mundo marcado por narrativas que moldam nossas percepções, guiam comportamentos e definem relações. Recentemente, ao ler o livro “Mais forte do que nunca” de Brené Brown, uma reflexão me impactou profundamente: as histórias que contamos a nós mesmos não apenas moldam quem somos, mas também influenciam a forma como nos relacionamos com o mundo. Brown nos ensina a reconhecer e ressignificar essas narrativas pessoais, um conceito que, quando ampliado, nos leva a questionar como as histórias que as nações e culturas contam sobre si mesmas e sobre os outros impactam as relações globais.

Essa reflexão me levou a pensar: como podemos aplicar este modelo, baseado em três estágios — Reconhecer, Rasgar e Revolucionar —, para reestruturar as narrativas em um nível coletivo e global? Mais importante ainda, como podemos integrar essas mudanças de forma eficaz nas três dimensões da Inteligência Cultural: governamental, empresarial e pessoal?

Essas perguntas nos levam diretamente a um tema fundamental: a Inteligência Cultural. A revista Harvard Business Review define essa competência como “a habilidade aparentemente natural de um estrangeiro interpretar os gestos desconhecidos e ambíguos de alguém da maneira como os compatriotas dessa pessoa interpretariam”. Mas, para mim, a Inteligência Cultural vai além: é a capacidade de compreender, respeitar e interagir de forma eficaz com pessoas de diferentes culturas, reconhecendo as narrativas que moldam suas percepções e comportamentos, além de entender as dinâmicas geopolíticas e as interconexões que influenciam essas culturas.

Reconhecer as Narrativas Coletivas: O Começo da Transformação nas Três Dimensões

Reconhecer no nível governamental

Desde cedo, percebi que a história que nos contam nunca é uma única verdade absoluta, mas sim uma construção moldada pela perspectiva de quem a narra. Crescendo, deparei-me com relatos divergentes sobre os mesmos eventos, o que despertou minha curiosidade em entender melhor como as narrativas são formadas e como influenciam o mundo. Essa percepção não é meramente filosófica; ela tem implicações concretas na política internacional, nos conflitos entre nações e até mesmo na forma como nos relacionamos com o outro em um nível individual e coletivo.

O primeiro estágio do processo de ressignificação das narrativas é o reconhecimento. Reconhecer as histórias que cada cultura e nação contam sobre si mesmas e sobre os outros é essencial para compreender as dinâmicas globais e os conflitos que emergem ao longo da história. Essa questão está intrinsecamente ligada à esfera governamental, onde decisões políticas e diplomáticas são amplamente influenciadas por narrativas predominantes.

Tomemos, por exemplo, o atual conflito entre Rússia e Ucrânia. Para muitos russos, a guerra representa a defesa da soberania histórica contra a expansão ocidental e a proteção de uma identidade compartilhada. Para os ucranianos, trata-se de uma luta contra o imperialismo, uma reafirmação de sua autonomia e uma resistência a um passado de dominação. Ambas as perspectivas são legítimas dentro de seus respectivos contextos culturais e históricos, mas ao mesmo tempo são opostas e irreconciliáveis. A questão central aqui não é qual narrativa é “verdadeira”, mas sim como essas histórias moldam a percepção da realidade e direcionam as ações de governos e populações.

O Poder das Narrativas na Construção dos Conflitos Internacionais

Se observarmos a história, veremos que quase todos os grandes conflitos foram construídos sobre narrativas concorrentes. O colonialismo europeu foi justificado por narrativas de “civilização e progresso”, enquanto os povos colonizados viam essa mesma realidade como opressão e exploração. Nos Estados Unidos, a Guerra Civil foi narrada no Sul como uma luta por direitos estaduais, enquanto no Norte era vista como um combate moral contra a escravidão. No Oriente Médio, as disputas entre Israel e Palestina são fortemente ancoradas em relatos históricos e religiosos, onde ambos os lados reivindicam legitimidade com base em suas narrativas ancestrais.

Em todas essas situações, a forma como os eventos são contados e compreendidos determina o curso da ação política e militar. As narrativas não são apenas histórias passadas; elas moldam identidades nacionais, influenciam políticas públicas e determinam alianças e rivalidades no cenário internacional. Dessa maneira, ignorar ou desconsiderar as narrativas do “outro” significa perpetuar conflitos e reforçar divisões.

O Papel dos Líderes e Diplomatas no Reconhecimento das Narrativas

Para que haja avanços na resolução de conflitos globais, é fundamental que líderes e diplomatas tenham a capacidade de reconhecer e compreender as diferentes narrativas em jogo. Isso exige empatia, abertura ao diálogo e uma disposição para enxergar a realidade através das lentes do outro. A diplomacia eficaz não se baseia apenas em interesses econômicos e estratégicos, mas também na habilidade de navegar entre histórias concorrentes e encontrar pontos em comum que possam servir como base para o entendimento mútuo.

O processo de paz na África do Sul, por exemplo, foi bem-sucedido em grande parte porque líderes como Nelson Mandela compreenderam a necessidade de integrar as narrativas opostas da população negra e branca, criando um novo discurso nacional baseado em reconciliação e justiça. Da mesma forma, acordos de paz entre Israel e Egito nos anos 70 só foram possíveis porque ambas as partes reconheceram a necessidade de respeitar as narrativas uma da outra.

Reconhecer no nível empresarial

No contexto organizacional, o conceito de “Reconhecer” transcende a simples compreensão dos processos internos ou das metas financeiras. Ele se refere à capacidade de perceber as narrativas culturais que moldam não apenas as práticas de negócios, mas também as relações interpessoais e os processos decisórios dentro das organizações globais. Cada empresa, ao interagir com diferentes mercados, carrega consigo um conjunto de histórias e interpretações que influenciam as escolhas estratégicas e a maneira como se posiciona no cenário internacional.

Essas narrativas frequentemente são carregadas de preconceitos ou estereótipos sobre outros países, culturas ou maneiras de fazer negócios. Por exemplo, uma empresa ocidental pode ter uma visão equivocada da abordagem mais hierárquica de uma empresa asiática, enquanto uma empresa do Oriente Médio pode ter dificuldades em entender a flexibilidade e a informalidade de uma organização americana. Essas percepções, muitas vezes inconscientes, podem afetar diretamente as negociações, a colaboração e a inovação dentro das empresas globais.

Reconhecer essas narrativas exige uma consciência crítica do papel que as histórias culturais desempenham nas decisões empresariais. Organizações bem-sucedidas no cenário global precisam adotar uma abordagem de escuta ativa, onde as narrativas das culturas envolvidas são reconhecidas, compreendidas e respeitadas. Essa prática não só fortalece a comunicação interna, mas também cria um ambiente propício para a resolução de conflitos, o alinhamento de valores e a construção de confiança, fatores fundamentais para o sucesso nos mercados internacionais.

Reconhecer no nível pessoal

Quando aplicamos o conceito de “Reconhecer” ao nível pessoal, entramos em um território mais íntimo e introspectivo. Cada pessoa, ao interagir com outros indivíduos, carrega consigo um conjunto de histórias que moldam sua percepção do mundo. Essas narrativas pessoais frequentemente envolvem uma construção de identidade influenciada por fatores como a cultura de origem, experiências passadas, educação e até mesmo os preconceitos inconscientes.

No que diz respeito às interações interculturais, esses preconceitos podem se manifestar de maneiras sutis, mas profundas. Por exemplo, uma pessoa pode ter uma visão distorcida de outra cultura baseada em estereótipos que não correspondem à realidade. A pessoa que vê uma cultura como rígida e conservadora pode ser influenciada por uma experiência negativa ou por uma narrativa preconceituosa aprendida ao longo da vida. Reconhecer essas narrativas pessoais, portanto, implica em um processo de autoanálise, onde as crenças e os julgamentos que temos sobre outros são desafiados e reavaliados.

Ao fazer esse reconhecimento, uma pessoa se torna mais aberta para entender e, muitas vezes, desconstruir esses preconceitos. Isso não significa ignorar as diferenças culturais, mas, sim, abordá-las de uma maneira mais construtiva e empática. O reconhecimento das nossas narrativas pessoais é um passo fundamental para interações mais autênticas, menos julgadoras e mais respeitosas. Ele permite uma abordagem mais genuína em encontros interculturais, promovendo uma comunicação mais eficaz e um entendimento mais profundo das diferentes perspectivas.

Em resumo, o ato de Reconhecer, tanto no âmbito governamental, organizacional quanto no pessoal, é um convite para nos tornarmos mais conscientes das histórias que contamos sobre os outros e sobre nós mesmos. Isso não apenas facilita a construção de relações mais autênticas e colaborativas, mas também abre portas para uma maior empatia e entendimento intercultural, aspectos fundamentais para o sucesso em um mundo globalizado.

Conclusão: A Transformação Começa pelo Reconhecimento

Se queremos um mundo menos polarizado e menos propenso a conflitos, precisamos começar pelo reconhecimento das narrativas. Isso não significa concordar com todas elas, mas sim entender como e por que elas se formam. Quanto mais cedo aprendermos a questionar a unilateralidade das histórias que nos contam, mais preparados estaremos para construir pontes entre culturas, nações e indivíduos.

Minha jornada pessoal em busca desse entendimento começou com a simples observação de que a história nunca é contada da mesma forma por todos. Ao longo dos anos, essa percepção evoluiu para uma compreensão mais profunda sobre o impacto das narrativas na política e nos conflitos internacionais. O desafio que se impõe a todos nós é ir além do que nos é apresentado de forma superficial e mergulhar no âmago das histórias que moldam o mundo ao nosso redor. Afinal, a verdadeira transformação só ocorre quando reconhecemos que não há uma única verdade, mas sim múltiplas perspectivas que precisam ser compreendidas e, sempre que possível, reconciliadas.

Rasgar as Narrativas Preexistentes: Desafiando as Ideias Comuns nas Três Dimensões

O segundo estágio de Brown, Rasgar, nos convida a questionar as narrativas existentes, investigar suas origens e entender como elas são perpetuadas ao longo do tempo.

Rasgar no nível governamental

Isso é especialmente relevante na dimensão internacional/governamental, onde muitas vezes as narrativas históricas e políticas perpetuam visões distorcidas que impedem a construção de relações pacíficas entre nações. Por exemplo, as histórias que envolvem o nacionalismo exacerbado ou o confronto com inimigos externos podem resultar em políticas agressivas e em desconfiança internacional. Rasgar essas narrativas envolve o trabalho de questionar essas verdades e procurar soluções para um entendimento mais equilibrado e construtivo.

Rasgar no nível empresarial

Em uma dimensão empresarial, as organizações precisam rasgar as narrativas que limitam a inovação ou que reforçam barreiras culturais dentro da empresa. Isso pode incluir a ideia de que as culturas ocidentais são superiores ou que as culturas orientais são excessivamente rígidas, por exemplo. Desafiar esses preconceitos internos ajuda as empresas a se tornarem mais inclusivas, eficientes e aptas a lidar com a diversidade de seus colaboradores e mercados globais.

Rasgar no nível pessoal

No nível pessoal, rasgar as narrativas significa abrir mão de estereótipos ou crenças limitantes que temos sobre nós mesmos e sobre outras culturas. Isso pode envolver, por exemplo, questionar o próprio olhar sobre a “superioridade” cultural ou a “dificuldade” em trabalhar com pessoas de diferentes origens. Rasgar essas barreiras internas é um passo essencial para desenvolver uma Inteligência Cultural genuína.

Revolucionar as Narrativas Globais: Criando Novos Caminhos nas Três Dimensões

O estágio final, Revolucionar, implica uma mudança radical na forma como vemos o mundo e nos relacionamos com ele.

Revolucionar no nível governamental

Em nível internacional/governamental, isso significa criar novas narrativas que promovam a paz, a colaboração e a equidade. Por exemplo, a transição de uma narrativa de confrontação para uma narrativa de diplomacia e resolução pacífica de conflitos pode ser a chave para um futuro mais seguro e cooperativo entre países. Revolucionar as narrativas globais envolve também a reinterpretação das histórias de identidade nacional, da soberania e do poder, de modo a promover uma convivência mais harmoniosa entre as nações.

Rasgar no nível empresarial

No contexto empresarial, Revolucionar as narrativas pode significar transformar a forma como as empresas lidam com diversidade e inclusão, adotando práticas que não só respeitam as diferenças culturais, mas que as celebram. A revolução no pensamento empresarial passa por ver a diversidade como uma fonte de inovação e não como um obstáculo. Ao adotar práticas empresariais que incentivem a inclusão e a equidade, as organizações podem construir culturas corporativas mais colaborativas e bem-sucedidas.

Rasgar no nível pessoal

Finalmente, no nível pessoal, Revolucionar significa adotar uma mentalidade de crescimento e empatia. Isso envolve a construção de novas histórias sobre como interagimos com outras culturas, onde a troca de conhecimentos, experiências e perspectivas se torna a base para um crescimento coletivo. Revolucionar a narrativa pessoal implica em abandonar a visão egocêntrica ou preconceituosa e abraçar uma visão global mais inclusiva e cooperativa.

Ressignificando Histórias para Liderar no Mundo Global

Ao longo da vida, somos moldados por narrativas que influenciam nossa visão de mundo, nossas decisões e nossos relacionamentos. Mas reconhecer essas histórias não significa apenas aceitá-las – significa ter a coragem de reescrevê-las e transformá-las em pontes para um futuro mais conectado e significativo.

Liderar no cenário global exige mais do que conhecimento técnico – exige consciência cultural, empatia e a disposição de romper padrões limitantes. É um convite para olhar além do óbvio, desafiar velhas crenças e construir um legado de impacto.

E você? Está pronto para revolucionar sua narrativa e liderar a mudança?

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