Reportagem
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Saúde baseada em valor: em busca do círculo virtuoso

Nos últimos três anos, novos entrantes começaram a transformar o setor de saúde, o que se acelerou com a pandemia de covid-19. Apoiados por investidores, esses players estão empoderando os clientes com inovações que vão de planos digitais focados na atenção primária e em prevenção a modelos de remuneração baseados em dados, diferentes do fee-for-service. O ponto de inflexão da era digital, enfim, se aproxima do setor de saúde.

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“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.” Troque o verbo amar por “cobrar mais de”, e considere que Lili paga a conta e não pode cobrar de ninguém, e o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, ilustrará o desalinhamento que tornou o mercado privado de saúde bastante ineficiente, traduzindo-se na chamada “inflação médica”.

“Os players têm incentivos desalinhados à medida que são remunerados de acordo com o uso de seus serviços. Ou seja, médicos, indústrias de medicamentos e equipamentos, hospitais, clínicas, laboratórios, serviços especializados etc. ganham dinheiro se fizerem mais e mais; é necessário que o incentivo para todos seja gerar valor para o paciente, não fazer mais por fazer. Estima-se que fraudes e desperdícios representem de 20% a 30% dos custos do setor”, diz Jorge Carvalho, head de inovação do Grupo Hospital Care.

“O problema se acentua com a mudança epidemiológica que vivemos, passando das doenças agudas às crônicas, que exigem um cuidado menos episódico e mais constante.”

Nos últimos cinco anos, empreendedores e inovadores têm feito ensaios no Brasil para que esse círculo vicioso comece a ser quebrado, porque não aceitam um ambiente da saúde tão complexo, conservador e fechado como o atual. “De um lado, surgem cada vez mais healthtechs trazendo novos olhares, digitalização, uso de dados e experiência do usuário (UX); de outro, empresas estabelecidas montam laboratórios de inovação, fazem inovação aberta e fusões e aquisições nessa direção”, comenta Carvalho, que acompanha de perto a movimentação.

Números da Distrito confirmam. Falando apenas de healthtechs, de 2018 a 2021, o número delas no País triplicou, pulando de 248 para 945 em setembro de 2021. E, na avaliação da Distrito, três já estão na fila para virar unicórnios, avaliadas em mais de US$ 1 bilhão: Alice, Dr. Consulta e Memed. Investidores peso-pesados estão envolvidos – como a Movile, dona do iFood, no caso Alice.

### Entendendo o desalinhamento
O desalinhamento é responsabilidade de todos, mas os planos de saúde deveriam ser os maiores interessados em inovar para realinhar, como está ocorrendo nos EUA. No entanto, não se veem agilidade e “vontade política” suficientes neles para fazer isso no Brasil. Os planos continuam a não fazer o trabalho de gestão de risco e de saúde, e a ser intermediários financeiros, pegando o prêmio, pagando o sinistro e repassando a alta dos custos aos clientes.

Também está na raiz do problema a falta de transparência do setor – decorrente de haver sistemas tecnológicos legados diferentes, de ser pouco digitalizado e de não ter dados integrados. E os usuários, por sua vez, não contribuem para a solução – principalmente nos planos pagos pelos empregadores (60% dos planos são empresariais), usados sem necessidade.

O modelo mais eficiente na atualidade, por conseguir promover algum alinhamento em torno do valor para o paciente, é o da verticalização, adotado por empresas como Hapvida, GNDI (Notre Dame) e Prevent Sênior. Porém, como a CPI da covid expôs, pode haver conflitos de interesse nesses casos. Outra fragilidade é não haver modelo verticalizado para clientes premium.

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![figura 1 – Saúde baseada em valor](//images.ctfassets.net/ucp6tw9r5u7d/14N9tJCdn66O4iaxgb99G7/15f444e1be48f0a9aebb08d3573cbfd2/figura_1_-_Sa__de_baseada_em_valor.png)

### Onde estão inovando
Há ao menos três fronts de inovação, todos movidos a dados e tecnologia, sobretudo inteligência artificial (IA).

O primeiro são os planos digitais, como Sami Saúde [veja quadro acima] e Alice, que chegam com a promessa de fazer prevenção e coordenação do cuidado e engajamento do usuário, e de aplicar reajuste mais baixo do que o mercado. O movimento da atenção primária, principalmente, pode começar a realinhar o sistema, criando uma porta de entrada que organize e coordene o cuidado. “Estamos falando de entender necessidades, riscos e históricos de saúde familiar das pessoas e de ajudá-las a navegar pelo sistema; não de ser um gatekeeper”, explica Carvalho. Segundo ele, a telemedicina – incluindo teletriagem, teleconsulta e telemonitoramento – pode ajudar a dar escala a esse processo de realinhamento, mas isso depende de encontrar modelos que possam engajar o usuário, o que ainda não aconteceu. “Nos próximos anos veremos se a promessa dos planos digitais se concretiza, porque a exigência de cobertura mínima e a judicialização atrapalham. Talvez eles tenham que queimar muito capital até achar o caminho”, afirma Carvalho.

Um segundo front de inovação é a interoperabilidade de dados, contexto em que se destaca o protocolo FHIR, espécie de “http da saúde”. “Quando temos um repositório de dados clínicos em FHIR, cada player consegue ler os dados, aplicar inteligência, fazer predição e – quem sabe – prescrição. Parte das healthtechs está trabalhando FHIR, como a Zetta Health, que quer criar um ‘open health’ na linha do open banking”, diz Carvalho. Mas esse é, em sua opinião, um desenvolvimento para a próxima década.

Também há a busca de inovação em modelos de remuneração. Uma startup que se propõe a isso é a Excella, criada pela Hospital Care, a rede de hospitais regionais que pertence a Elie Horn e Júlio Bozano. Primeiro, ela está trabalhando essa agenda internamente e depois vai levá-la ao mercado. Como conta Jorge Carvalho, o Grupo Hospital Care fez uma joint venture com a Semantix, empresa líder no Brasil em big data e IA.

Vale observar que cada vez mais empresas do setor têm laboratórios de inovação. Por exemplo, a Dasa, de Pedro Bueno, referência como inovador, tem dois: Cubo Health e Dasa EXP.

### Value-based healthcare à vista
Em 2006, o estudioso de estratégia Michael Porter lançou o conceito de saúde baseada em valor – VBHC, na sigla em inglês [veja texto à esquerda]. A partir de 2015, com a entrada do capital entrangeiro, vimos a profissionalização do setor no Brasil e, nos últimos três anos, players distintos finalmente estão buscando criar sua agenda de valor por meio de ecossistemas e plataformas digitais em que navegam os pacientes, em geral com fusões e aquisições.

O Grupo Fleury lançou um marketplace de soluções, o Saúde ID, que inclui um modelo de vendas de cirurgias “all inclusive”. O Grupo RD, de varejo, está montando um ecossistema de empresas diversas, que vai de promoção de saúde, como Healthbit (gestão de saúde de empresas com tecnologia), a engajamento de clientes, como Stix Fidelidade; passando por marcas próprias de remédios, como Vegan by Needs; especialidades, como Manipulaê (que compara orçamentos de remédios manipulados); e acesso e aderência a tratamentos, como o programa de benefícios em medicamentos Univers. Entre os hospitais, a Rede D’Or trabalha essa agenda se aproximando do paciente por meio da D’Or Consultoria e com uma participação de 25% na gestora de planos Qualicorp.

O setor de saúde está, SIM, perto de UM ponto de inflexão, ainda que a falta de um coordenador da inovação (como é o Banco Central para a inovação em curso no setor financeiro) torne o processo algo mais lento. Porém Drummond diria que João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim e Lili vão todos acabar tendo de se amar. Afinal, serão todos parte de um ecossistema. E precisarão amar o paciente.

Sami: inspiração no Nubank

Em entrevista, o cofundador e sócio da healthtech, Vitor Asseituno, explica seus diferenciais por Adriana Salles Gomes

Como você empreendeu algo diferente como a Sami Saúde?
Acho que foram três as inspirações. Primeiro, vi que há um grande problema para resolver: as pessoas consideram os planos de saúde privados do Brasil ruins – um mal necessário –, e o acesso a esses planos está diminuindo. Se 75% dos brasileiros já não tinham acesso poucos anos atrás, agora esse indicador está perto de 80%. Segundo, vimos o surgimento dos planos de saúde digitais nos EUA, como Oscar, Clover e Bright, que se baseiam em dados e tecnologia. Terceiro, nos inspiramos no que fez o [cofundador do Nubank] David Vélez, que conheci quando representava o Sequoia no Brasil. Ele viu muitos desbancarizados, além de muitos clientes insatisfeitos com os cinco bancos que controlavam mais de 80% do mercado brasileiro. E se inspirou no Capital One, banco digital americano, para mudar isso com tecnologia. Os setores de bancos e de saúde são parecidos, muito regulados.

Vélez era de fora do setor, mas você é insider. Como enxergou a oportunidade?
Tanto eu quanto o Guilherme Berardo, meu cofounder, somos da área de fato. Ele é cofundador da rede de hospitais de long-term care Premium Care. Eu me formei em medicina na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e participei de dois negócios de sucesso no setor. Um foi a Live Healthcare – empresa de eventos para gestores da área de saúde que resultou da fusão de uma empresa que fundei na faculdade com a divisão da healthcare da IT Mídia. Passei quase quatro anos como CEO da Live. Também fui sócio da startup de prontuários eletrônicos Vitta [adquirida pela Stone em maio de 2020]. Acho que enxerguei a oportunidade porque, fazendo os eventos com executivos de hospitais, laboratórios, operadoras, todo ano eu via que as discussões eram as mesmas. Falava-se muito pouco de tecnologia e de solução inovadora, sendo que a complexidade do setor pede muita tecnologia. O Peter Drucker dizia que “o hospital é a empresa mais complexa já criada”.

Como vocês desenharam e lançaram o negócio?
Vendi minhas participações na Live e na Vitta em maio de 2018 para poder investir na Sami. Em junho, o Guilherme passou a atuar em tempo integral. Então, trouxemos pessoas brilhantes como advisors, como a Martha Oliveira, ex-diretora da Agência Nacional de Saúde [ANS] e o Alan Warren, CTO da Oscar Health, que foi o cara que criou o Google Drive. E nossa ideia é ter o melhor time de tecnologia para saúde na América Latina, um dos melhores do mundo. Nosso primeiro CTO veio do Dr. Consulta, onde tinha feito um prontuário eletrônico que virou referência, e acabamos de contratar para CTO o Alexandre Freire, que era o diretor sênior de engenharia do Nubank.

Isso tem sido possível porque a Sami atrai investidores: teve captação recorde no setor de saúde Latam na rodada série A, acaba de captar mais R$ 111 milhões e há altas expectativas para a série B em 2022. A que você atribui?
De fato, quatro dos cinco fundos de investimento mais ativos da América Latina investem em nós. Por quê? O Guy Ward, diretor do DN Capital, que liderou o último aporte com Monashees e outros, diz que “ao oferecer uma proposta melhor a preços acessíveis, a Sami estabeleceu os alicerces para um crescimento exponencial”. Crescemos 47% ao mês em 2021. Acho que acertamos no público-alvo – pequenas e médias empresas (PMEs) – e no pricing (entre R$ 200 e R$ 400 ao mês por pessoa) e estamos acertando na execução – nossa sinistralidade é de 40% a 60%, ante 100% em outras empresas.

E como vocês fazem isso?
Temos um material “how to win” [como vencer] com oito pilares para oferecer um serviço melhor para as pessoas e sermos sustentáveis. Posso citar alguns. Um pilar é o modelo assistencial correto. O usual é o segurado escolher seu ortopedista entre um grande número de opções quase na base do uni-duni-tê; é um leigo tomando decisão com pouca informação. Nós fizemos diferente: criamos o médico de família obrigatório, nosso contratado, que resolve 80% das questões e encaminha o paciente ao especialista nas outra 20%. Os clientes adoram esse médico; tem um NPS de oito ou mais.
Um segundo pilar é a tecnologia, que inclui a telemedicina, mas não se limita a ela. Em janeiro de 2021, fomos a primeira empresa na história do Brasil a vender um plano empresarial 100% digital, sem vendedor, sem corretor, nada. A gente trabalha em squads com profissionais de tecnologia e time de saúde 24 horas – e 100% remotos. Temos pessoas contratadas no Brasil inteiro, cinco na Europa, acabamos de contratar a primeira nos EUA.
Outro pilar é a rede de prestadores de serviços enxuta. Um plano de saúde costuma vir com 20 hospitais no mínimo, mas as pessoas usam dois ou três na vida – aquele onde nasceram e do qual gostam, um perto de casa e um de excelência. Com menos parceiros, tentamos modelos além do fee for service. A remuneração pode envolver, por exemplo, trocar dados – para controlar custos. E também atuamos só em São Paulo, oferecendo seguro para as viagens.

Qual a mudança-chave entre o modelo de negócio tradicional e o da Sami?
Nosso modelo diz ao cliente: eu quero ficar 20 anos com você, não dois anos – o tempo médio de uma pequena empresa numa operadora de saúde é 22 meses, por causa dos reajustes de 20% ou 30% ao ano nos planos. A Sami fez um reajuste de 6,2% em 2021, porque quer ter um relacionamento de longo prazo e também porque pode – já que registra baixa sinistralidade.
Em meu modelo, faz sentido investir em prevenção, porque eu vou colher o benefício lá adiante. Pago a mamografia agora para não pagar a conta de um câncer muito mais caro depois. Pago a academia para os clientes – o Gympass –para estimular a atividade física [preventiva] e evitar um infarto mais tarde. Já a operadora tradicional direciona menos de 0,02% dos investimentos a prevenção, sabendo que a rival é que vai aproveitar.
Os dados viabilizam a eficiência para o custo não disparar, porque nos ajudam a fazer uma gestão sem gap nem excesso de cuidados. Se tenho, no mesmo banco de dados, dados reais de atividade física e de contas médicas, consigo cruzar e saber que a conta de ortopedia não diminui com exercício, por exemplo, mas as contas de cardiologia e neurologia, sim.

O plano Sami nasceu em novembro em 2020. Como será em cinco anos?
Hoje temos 6 mil associados. No fim de 2024, quando nosso modelo tiver se provado maduro, esperamos ter meio milhão de associados. É superpossível escalar a Sami: só de MEIs, o Brasil tem 11 milhões.

inflação médica

O último Global Medical Trends, report da Willis Towers Watson, que mede custos médicos em 61 países, prevê em 2022 uma inflação médica em níveis pré-pandêmicos, sendo 14,2% na América Latina (11,1% no Brasil), 7,6% na região Ásia Pacífico, 6,7% na Europa e 10,6% no Oriente Médio e África. Historicamente, no Brasil, tem sido o dobro do IPCA.

VBHC fez
15 anos

Em 2006, Michael Porter lançou o livro Repensando a Saúde, lançado no Brasil em 2007, que serviu como uma espécie de manifesto contra a competição de soma zero que caracteriza o setor de saúde. O que o professor de estratégia da Harvard Business School propôs foi um redesenho estratégico das empresas do setor em torno do que importa: o valor gerado para o paciente – chama-se de “value-based healthcare (VBHC). Os elementos que deveriam ser endereçados por toda a cadeia de valor são uma equação: adequação x custo/desfecho. Embora já seja consenso que esse é mesmo o caminho a seguir, o desfecho ainda é algo muito difícil de medir – levando em conta todo o ciclo do cuidado, não somente uma intervenção específica. Na maioria das empresas, isso acaba ficando nas apresentações de PowerPoint em vez de ser implantado. A esperança é que a inovação das startups possa mudar esse estado das coisas.

Os planos digitais

Confiança e respeito ao tempo e ao dinheiro dos envolvidos são valores da Sami Saúde, que, como QSaúde e Leve Saúde, ilustra o modelo de health insurer orientada à atenção primária e focada em PMEs. Eis alguns atributos:

1. Foco em engajamento do usuário por meio de time de cuidado multiprofissional 24 horas e com a utilização de tecnologias próprias.

2. Estímulo a atividades de prevenção à saúde, seja com acesso gratuito a apps (incluindo de mobilidade, para levar pessoas ao médico), a academias de ginástica.

3. Promessa de reajustes menores que o mercado.

4. Trabalho com rede restrita de prestadores de serviços em área geográfica limitada (mas com uso de seguros de viagem).

5. Busca de parceiros dispostos a trocar dados de saúde/assistenciais e controlar custos.

6. Times com 50% das pessoas de tecnologia.

7. Estudo de modelos de remuneração alternativos ao fee-for-service.

Paragrafo 2

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