Soluções TerraDois

Saúdes mentais

Muito além de uma consequência da crise da covid-19, a tão falada epidemia de saúde mental tem suas causas na transição para a realidade múltipla e globalizada da TerraDois
Psicanalista e psiquiatra, doutor em psicanálise e em medicina. Autor de vários livros, especialmente sobre o tratamento das mudanças subjetivas na pós-modernidade, recebeu o Prêmio Jabuti em 2013. É criador e apresentador do Programa TerraDois, da TV Cultura, eleito o melhor programa da TV brasileira em 2017 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Compartilhar:

Saúde mental é o tema do momento. Não passa uma semana que alguém não me peça um esclarecimento a esse respeito. Especialmente as empresas que se descobriram com uma batata quente na mão, condensada na expressão aflita: “Nossa! Meus colaboradores têm família, ficam doentes, gostam de coisas esquisitas, viajam para locais aos quais eu nunca iria, discutem com seus respectivos companheiros ou companheiras, educam seus filhos das mais diversas e surpreendentes maneiras, decoram suas casas com gosto duvidoso, convivem com sogros insuportáveis, gostam de esportes radicais, músicas cafonas, restaurantes tão horrorosos quanto gordurosos, meu Deus, me dá um remédio!”.

Pensa-se que é tudo efeito da covid, esse vírus malandro que obrigou ao trabalho em casa, ou – como alguns preferem –, em bom português, ao *home office*. Esse trabalho a distância entrou na intimidade das casas, mostrando até a cueca samba-canção do juiz distraído que se levantou para buscar um copo d’água e escancarou estar sem calças. Teve o outro, também, sobre o qual sua falsa biblioteca – que era só paisagem – lhe caiu na cabeça em meio a um julgamento. Suas excelências não estão com muita sorte, mas isso é tema para outro artigo. Fato é que, voltando ao principal, as empresas estão se dando conta, como nunca dantes, que seus funcionários são pessoas, obrigando-as a se confrontar com a complexidade que isso implica.

Não devemos misturar causa e coincidência. Não penso que a gripe chinesa seja a causa, mas uma coincidência que acelerou um processo já em curso. O processo em curso, decorrente da revolução tecnológica, é este que temos debatido no espaço destas colunas, a saber, a passagem de um mundo uniformizado e padronizado, TerraUm, para um mundo múltiplo, flexível, globalizado, TerraDois. No mundo uniformizado em que as organizações se acostumaram a viver, a subjetividade humana não passava pelo portão. Deixe seus problemas pessoais em casa, não os traga para o trabalho, e vice-versa, deixe seus problemas de trabalho na empresa, não os traga para casa, costumava-se dizer. A pós-modernidade explodiu o muro que separava esses dois mundos. Hoje, com açúcar e com afeto, fiz sua empresa predileta – data venia Chico Buarque –, para horror dos burocratas.

O perigo, que já mostra seu rosto, é medicalizar a “incômoda” subjetividade humana. Para se passar por “up-to-date”, muitas empresas começaram a oferecer discutíveis planos de saúde mental. Em vez de elas se reinventarem em TerraDois, dando lugar e expressão à singularidade das pessoas, elas, disfarçadas em boas intenções – sim, aquelas mesmas que pavimentam o caminho do inferno –, pensam que desejo se educa e que podemos fazer assepsia das emoções, catalogando-as como ansiedade, depressão, burnout e congêneres, achando um remédio para cada quadro. Não vai dar certo. Ainda bem.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Há um fio entre Ada Lovelace e o CESAR

Fora do tempo e do espaço, talvez fosse improvável imaginar qualquer linha que me ligasse a Ada Lovelace. Mais improvável ainda seria incluir, nesse mesmo

Carreira, Diversidade
Ninguém fala disso, mas muitos profissionais mais velhos estão discriminando a si mesmos com a tecnofobia. Eles precisam compreender que a revolução digital não é exclusividade dos jovens

Ricardo Pessoa

4 min de leitura
ESG
Entenda viagens de incentivo só funcionam quando deixam de ser prêmios e viram experiências únicas

Gian Farinelli

6 min de leitura
Liderança
Transições de liderança tem muito mais relação com a cultura e cultura organizacional do que apenas a referência da pessoa naquela função. Como estão estas questões na sua empresa?

Roberto Nascimento

6 min de leitura
Inovação
Estamos entrando na era da Inteligência Viva: sistemas que aprendem, evoluem e tomam decisões como um organismo autônomo. Eles já estão reescrevendo as regras da logística, da medicina e até da criatividade. A pergunta que nenhuma empresa pode ignorar: como liderar equipes quando metade delas não é feita de pessoas?

Átila Persici

6 min de leitura
Gestão de Pessoas
Mais da metade dos jovens trabalhadores já não acredita no valor de um diploma universitário — e esse é só o começo da revolução que está transformando o mercado de trabalho. Com uma relação pragmática com o emprego, a Geração Z encara o trabalho como negócio, não como projeto de vida, desafiando estruturas hierárquicas e modelos de carreira tradicionais. A pergunta que fica: as empresas estão prontas para se adaptar, ou insistirão em um sistema que não conversa mais com a principal força de trabalho do futuro?

Rubens Pimentel

4 min de leitura
Tecnologias exponenciais
US$ 4,4 trilhões anuais. Esse é o prêmio para empresas que souberem integrar agentes de IA autônomos até 2030 (McKinsey). Mas o verdadeiro desafio não é a tecnologia – é reconstruir processos, culturas e lideranças para uma era onde máquinas tomam decisões.

Vitor Maciel

6 min de leitura
ESG
Um ano depois e a chuva escancara desigualdades e nossa relação com o futuro

Anna Luísa Beserra

6 min de leitura
Empreendedorismo
Liderar na era digital: como a ousadia, a IA e a visão além do status quo estão redefinindo o sucesso empresarial

Bruno Padredi

5 min de leitura
Liderança
Conheça os 4 pilares de uma gestão eficaz propostos pelo Vice-Presidente da BossaBox

João Zanocelo

6 min de leitura
Inovação
Eventos não morreram, mas 78% dos participantes já rejeitam formatos ultrapassados. O OASIS Connection chega como antídoto: um laboratório vivo onde IA, wellness e conexões reais recriam o futuro dos negócios

Vanessa Chiarelli Schabbel

5 min de leitura