Parece que a pandemia foi há 10 anos atrás. Mas não tem sido simples a tentativa de retomar a “vida normal”, até porque, na verdade, a gente já não estava bem: em 2019, a OMS apontou o Brasil como o país mais ansioso do mundo. Muitas palavras e conceitos novos, muita gente com o pensamento velho e um choque entre o que “deveria ser” e o que “consigo ser”. E essa distância tem um nome: frustração. Quanto maior a distância entre o ideal e o possível, maior o sentimento de fracasso e frustração. Vale lembrar que, durante o confinamento domiciliar com o home office, muitas pessoas se questionaram sobre temas que nunca tinham pensado, como, por exemplo, qual a lógica de pegar 2h de trânsito para ir e 2h30 para voltar do trabalho todos os dias se meu trabalho é em frente a um computador? Ou ainda “por que eu preciso ficar longe dos meus filhos se grande parte do meu trabalho posso fazer em diferentes horários?”. Parecem perguntas simples, mas são disruptivas.
A obrigatoriedade do retorno ao trabalho presencial criou uma desconfiança na relação com a empresa, fato explicado pelo conceito de contrato psicológico, um acordo não explícito de como o colaborador se comporta a partir de como ele vê o cuidado e o interesse real da empresa em seu bem-estar. E o retorno compulsório – que para muitos é irracional – e a busca de mais tempo com os filhos, criaram uma trinca na percepção do interesse da empresa no bem-estar do colaborador. Quem conseguiu entender essa nova lógica fortaleceu o contrato psicológico e atraiu novos talentos.
Um dos sintomas desta quebra de paradigma é o quiet quitting, a desistência silenciosa de uma massa de colaboradores (em particular, os mais jovens) e o pedido de demissão que surpreende a empresa. O grande movimento de demissão nos Estados Unidos, fenômeno conhecido como great resignation (movimento maciço de pessoas que desistem dos seus empregos) acendeu o alerta no RH e no c-level: os modelos tradicionais de promessas de salários e símbolos de status não têm mais o apelo para as novas gerações.
A pandemia levou muitas pessoas a reverem seu estilo de vida e questionar se o trabalho deveria ocupar o altar central de suas vidas. Algumas revistas especializadas como a Harvard Business Review, falam que o fenômeno tem grande influência dos impactos da pandemia na saúde mental das pessoas, disparando os índices de estresse, ansiedade e comportamentos compulsivos. Concomitante a isso, em agosto de 2022, a OMS retirou a síndrome de burnout da categoria de doenças mentais e a alocou no grupo de doenças ocupacionais. Essa mudança tem grandes implicações legais e sociais, uma vez que o burnout é equiparado ao acidente de trabalho.
Quando um grupo de pessoas se move para sair da organização, isso não significa que elas não querem trabalhar, mas sim que não querem trabalhar adoecendo. Em outras palavras, esse fenômeno fala sobre a cultura da empresa, sobre a liderança imediata e de como essas pessoas se veem no futuro da organização. As pessoas querem trabalhar sim, mas não com o preço da sua saúde e da qualidade de vida, em particular as gerações mais jovens.
Mas algumas empresas seguem na contramão do cuidado com as pessoas e aumentam o risco psicológico quando agem de maneira velada na relação com os colaboradores. Uma das formas mais faladas recentemente deste comportamento antiético é o quiet firing, processo no qual o gestor vai ”fritando” o colaborador com feedbacks intencionalmente negativos e falta de suporte para que peça demissão, ou que, com a baixa performance, seja demitido.
Este comportamento de um gestor (conhecido ou não pela sua liderança) é um indicador da cultura moral do líder e/ou da organização (nem sempre a empresa enxerga os seus psicopatas, muitas vezes os premia pelos “bons resultados”). A melhor definição do quiet firing é assédio moral, uma forma de sequestro do valor do indivíduo e um esvaziamento progressivo de sua contribuição. Pesquisas comprovam que este é um dos principais desencadeadores de burnout.
As pesquisas mostram que o chefe imediato tem um papel central nesse processo, pois é ele quem tem o papel e o poder de avaliar o colaborador. Além disso, define suas tarefas e oferece (ou não) suporte para que tenha sucesso em sua jornada.
Com a ênfase no ESG, o S (social) entrou em evidência com o tema da saúde mental. Dados da consultoria McKinsey mostraram que especialistas em ESG ouvidos afirmaram que o social é o tema mais crítico na agenda do c-level daqui para a frente. Como a saúde mental e segurança ocupacional são resultantes da equação da gestão, os sintomas psiquiátricos de um grupo de colaboradores, assim como o índice de gravidade de acidentes e incidentes, apontam para a qualidade da gestão.
Apesar de todo o custo e impacto desta série de crises, estamos aprendendo a olhar com mais profundidade e honestidade para o que acontece na vida real da operação. O photoshop organizacional – que fica entre a realidade dos colaboradores da base e o que chega de informação no c-Level – não consegue mais esconder a vida como ela é. As soluções de ontem não funcionam mais e é por isso que nós, professores, consultores e gestores, precisamos reconhecer que tratar os sintomas com cursos de liderança e cursos de comunicação não vai resolver o problema.
É preciso um novo patamar de maturidade moral e cultura moral nas organizações para entender o sistema organizacional e ajudar na construção de caminhos que ainda não conhecemos. E essa é uma nova agenda do RH e do c-level. A cultura não é o que falamos nas salas da alta gestão, mas o que acontece lá na ponta, na operação. O sistema não pode mais premiar quem bate meta, mas não constrói o futuro.
Deve-se olhar com mais atenção para o desenvolvimento de lideranças, criando contextos indutores do comportamento e não esperar que as pessoas mudem a partir de um insight. As pessoas mudam quando precisam, não quando querem. Por isso acredito que o investimento em cursos clássicos de gestão não gera mais os resultados do passado: a “Era do Tamanho Único” acabou.