Dossiê HSM

Só valentão muda de carreira ou profissão?

No que tange à carreira – e, em muitos casos, à condução dos negócios – fomos educados a tomar decisões movidos pela segurança. Mas, sim, é possível mudar de rota com sucesso, porém demanda coragem e resiliência

Gisele Abrahão

Gisele Abrahão é fundadora da Global Vision Access (GVA). Fundou a plataforma Bureau Mundo, ponto...

Compartilhar:

Em 2008, eu estava em Nova York e participava de um evento da Unesco, no qual a rainha Rania da Jordânia fez uma apresentação que mostrou a importância de olharmos além de nossos umbigos. Seu discurso lembrou que ainda havia crianças sem acesso a necessidades básicas, como água potável, e me inspirou de tal maneira que eu senti que precisava de uma mudança radical na vida. Não seria a primeira vez.

Mudanças são necessárias. Não a cada dez anos, mas com frequência. Sempre busco explorar e me aventurar em atividades que não conheço, e isso explica as muitas viradas que tive ao longo da minha jornada. Tanto as que me levaram a ver a rainha da Jordânia quanto as que me fizeram empreender no mercado de turismo e criar iniciativas, como um prêmio que reconhece boas práticas em economia sustentável e inclusiva.

Sempre gostei de viajar. Aos 19 anos, fui para a Austrália estudar inglês, mas cancelei o curso e fiquei seis meses rodando pela Oceania. Aos 21, retomei a ideia de estudar inglês, agora na Califórnia, mas desisti de novo e acabei surfando com o namorado da época na Costa Rica. De volta ao Brasil, fui selecionada no concorrido programa de trainee da C&A. Salário ótimo, benefícios incríveis, mas senti que não pertencia àquele mundo. Com 22 anos, larguei tudo (de novo), passei uns meses na Colômbia e me mudei para Washington.

Meus pais e amigos ficaram desapontados. Afinal, eu estava abrindo mão de um “futuro brilhante”. Mas as possíveis viagens, as novas vivências e as oportunidade de, enfim, estudar inglês eram muito mais atraentes para mim.
Recebi vários “nãos” de universidades americanas até ser aceita em um MBA. No primeiro semestre, optei apenas por aulas de matemática. Foi estratégico, já que o inglês não seria tão necessário como em outras disciplinas. Assim, consegui todas as notas “A” necessárias para permanecer no curso – exigência do coordenador para me deixar seguir no MBA, pois ele temia que meu inglês “quebrado” seria um impeditivo para eu conseguir o diploma.

Durante o MBA, consegui um estágio no escritório de turismo da Jordânia para a América do Norte. Pois é, nem eu entendia muito bem o que uma brasileira perdida em Washington fazia promovendo a Jordânia para os norte-americanos. Não sabia nada sobre o país, além do fato de que fica no Oriente Médio. Mas conheci sua imensa cultura e me senti motivada a mostrar às pessoas que elas tinham uma percepção muito errada sobre esse lindo país. Para complicar a situação, os atentados de 11 de setembro de 2001 tinham acabado de acontecer, e o preconceito contra árabes e o Oriente Médio estava no auge.

Fiquei quase oito anos nesse trabalho. Viajei muito – houve anos em que passei menos de 50 dias em casa. Até aquele dia, em 2008, em que o discurso da rainha Rania mexeu profundamente comigo e me fez buscar uma vida com mais propósito.

## A conexão com o impacto ajudou
No começo de 2009, em meio a outro momento dramático do mundo, a crise financeira global iniciada meses antes, fiz uma pausa nesse trabalho incrível e fui me aventurar na África. Ninguém entendia por que eu estava fazendo essa escolha, e esse era um dos motivos que me levaram a andar sozinha pelo planeta. Não entendia, e continuo sem entender, como o ser humano pode complicar tanto a vida. Eu estava abraçando esse jeito de ver as coisas de forma simples e construindo meu mundo colorido (ou das maravilhas, como alguns amigos o chamam).

Em sete meses, estive em 13 países, uma viagem que começou no Iraque e teve uma longa parada em Uganda. Lá, por dois meses fiz trabalho voluntário em Katebo, vila em que 90% da população tinha aids. Foi chocante e dolorido. Fiz de tudo, desde ajudar a construir a escola, levar comida para as crianças, dar aulas de inglês e de geografia.

Ao me despedir, notei que as crianças, quase todas órfãs, não olhavam para mim. Perguntei a uma delas o que havia, e ela respondeu: “Você é igual a todos os outros que amamos, vai nos abandonar também… como nossos pais”. Fiquei em choque por dois dias até resolver voltar e tentar me explicar. Ao perguntar a elas se tinham gostado de passar aquele tempo comigo e se achariam bacana se eu fizesse o mesmo em outras vilas, com outras crianças, as respostas foram “sim” e “sim”. Então perguntei o que poderia fazer para que não ficassem tristes comigo. Elas queriam que eu prometesse que voltaria. Isso eu não podia prometer, e busquei outra negociação. Elas pediram que eu as amasse para sempre – essa sim uma promessa que pude cumprir.

Foi a maior lição que eu tive. Por mais que pensemos que estamos apenas ajudando, não temos noção do impacto que podemos causar nas pessoas. Nossa intenção nunca pode ser tomada como verdade absoluta, mas também não pode deixar de ser defendida.

Viajei em um caminhão por outras partes de Uganda, Ruanda, Quênia, Tanzânia, Zâmbia, Zimbábue, Botsuana, Namíbia, África do Sul e Moçambique. Quebrei tabus ao mostrar que uma mulher solteira, sem filhos e com mais de 30 anos estava tendo a vida que queria e não era alguém com alguma doença. Lua, mulher que conheci entre o Quênia e a Tanzânia, disse que nunca tinha visto alguém com olhar feliz como o meu. Decidiu que contaria minha história à sua filha quando esta completasse 15 anos. Assim ela poderia escolher seu caminho em relação a casamento.

Não sei se Lua cumpriu a promessa – a menina na época tinha uns sete anos –, mas tenho certeza de que comentou com amigas e parentes. Sinto que plantei uma sementinha naquelas mulheres, que podem ter se identificado com minha vontade de viver e de aprender.

Depois da África, decidi voltar para o Brasil para ficar mais perto da família e abrir a minha empresa. Tinha muita vontade de usar meu conhecimento sobre promoção de destinos e colaborar com o crescimento da indústria do turismo. Assim, no fim de 2009, comecei a GVA, empresa de consultoria estratégica, comunicação e marketing.

Tecnologia a favor da coragem
Plataformas foram meio para Abrahão viabilizar dois projetos de impacto

Com 20 anos de experiência na indústria de viagem e turismo, Gisele Abrahão já trabalhou diretamente com empresas do setor em mais de 35 países. Sempre se incomodou com a cultura de competição e ao comportamento engessado do setor. E sempre lutou por um estímulo à melhor governança nessa área.

Então, ela resolveu empreender o que acreditava. Primeiro, fundou o Bureau Mundo, em 2020, como uma plataforma digital para criar e estimular novas oportunidades de negócios, otimizar processos e aumentar a produtividade. O turismo é uma indústria complexa, que resulta da união de diversos setores, oferece uma enorme variedade de produtos e serviços e está sujeita a muitas interferências – decisões governamentais, desastres ambientais, guerras e pandemias, características culturais, complexidade logística, desempenho econômico dos mercados etc.

Todos esses fatores dificultam o entendimento e a implementação de ações necessárias para o sucesso do negócio. E revelam a necessidade dos players de ter processos mais ágeis e flexíveis, a dificuldade de manterem relacionamentos têm com consistência e abrangência, e os desafios constantes representados pela produtividade e pela redução. Todos esses fatores justificam, portanto, a criação da plataforma. “Para ilustrar a razão de ser do Bureau Mundo”, diz Abrahão, “relembro a famosa frase de Charles Darwin: ‘Na história da humanidade (e dos animais também), aqueles que aprenderam a colaborar e improvisar foram os que prevaleceram’”.

No mesmo ano, a empreendedora criou a plataforma Impactos Positivos, por acreditar que a sociedade atual compreende a importância do engajamento de organizações com causas que ajudem o planeta de alguma forma. Trata-se de uma vitrine digital para estimular entendimento, reconhecimento, valorização e fomento dos ecossistemas de impacto.

O prêmio está em sua terceira edição e, este ano, conta com a parceria de instituições como Sebrae Nacional, Capitalismo Consciente, Comunidade GoNew, Humanizadas, Instituto da Transformação Digital e Enimpacto e apoio do Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). (Redação HSM Management)

De lá para cá, invisto os aprendizados de tantas viagens em inovação e em soluções que atendam não só equipe, clientes e parceiros, mas também as comunidades e o planeta como um todo. Fui reconhecida pela indústria com prêmios como 50+ Poderosos do Turismo 2016, da Panrotas, que destacou líderes que melhor lidam com momentos de crise. Em 2018, fui homenageada com o plantio da Árvore de Integração Festuris por minhas práticas sustentáveis no ramo de viagens. Este ano, a Humanizadas apontou a GVA como uma das melhores empresas para o Brasil.

Quando surgir uma pedra, dê a volta
Diante de um obstáculo, a coragem de Abrahão está em buscar novos caminhos

Pedra no caminho: No inicio, a ideia era trazer mais colaboração entre os players de turismo em um ambiente digital da GVA. Houve muita resistência e medo de concorrência.
Como contornou: A criação de uma nova marca(a Bureau Mundo) foi aceita por todos.

Pedra no caminho: O alto custo dos desenvolvedores e o prazo de entrega longo inviabilizaria o projeto.
Como contornou: Informações e compreensão das ferramentas disponíveis permitiu que a própria empresária criasse o MVP da iniciativa.

Pedra no caminho: O setor desejava voltar para o pré-pandemia, em que tudo era presencial
Como contornou: Ela trabalhou a cultura de que o braço digital reduz tempo operacional que ajuda a ter foco na experiência do cliente

## A pandemia e uma nova evolução
Em 2020, quando a indústria do turismo estava aterrorizada com as perspectivas que a pandemia parecia reservar, na GVA mantivemos todos os empregos e não reduzimos carga horária. Mas eu sentia que precisava fazer mais, fazer algo diferente. Em julho daquele ano, criei a plataforma Bureau Mundo. A proposta era fazer dela um ponto de encontro digital dedicado à indústria do turismo. Serve para trazer soluções customizadas que potencializam o alcance, as oportunidades de negócios e o networking entre os profissionais do setor com um mindset mais colaborativo, produtivo e efetivo.

Para mim, é essencial a criação e engajamento em ações que permitam sermos protagonistas e não simples espectadores. Assim, também em 2020, lancei o Prêmio Impactos Positivos, um “Oscar do bem”, como foi apelidado. Seu objetivo é dar visibilidade às iniciativas que impactam positivamente o Brasil e o mundo. Está na terceira edição e a premiação acontecerá em novembro.

Em 2022, continuo analisando novas oportunidades e possibilidades. Estou me certificando como conselheira de inovação para ir além dos meus negócios e poder agregar a outros empreendedores que estão focados em impactar de maneira positiva a nossa sociedade.

Somos, sim, responsáveis pelos nossos resultados e devemos nos guiar por isso de maneira estimulante, não limitante. Independentemente de quão simples ou complexa seja a decisão a ser tomada, devemos olhar para a situação de uma maneira positiva e motivadora. Toda mudança traz melhorias, toda diferença deve ser entendida como riqueza, os medos devem ser encarados como desafios, crises são alertas para novas oportunidades. Cada transição faz parte do processo de evolução. Viajei para mais de 60 países, tive a oportunidade de morar em quatro. Cada uma dessas experiências me fez uma pessoa melhor e mais viva. Me ajudaram a enxergar que a vida pode, e deve, ser mais simples.

Pilares que sustentam novas rotas

Apesar das muitas reviravoltas ao longo de sua carreira (que ela vê como movimentos evolutivos), Gisele Abrahão encontra segurança e alinhamento nessas mudanças de rota em alguns princípios:

• Frente aos obstáculos, mantenha uma postura positiva e motivadora
• Confie que as mudanças trarão melhorias
• Veja as diferenças como riquezas que facilitam a colaboração
• No lugar de fonte de problemas, as crises devem ser vistas como sinais de oportunidades
•Transformar o medo em um desafio

__Leia mais: [CPO, propósito e coragem](https://www.revistahsm.com.br/post/cpo-proposito-e-coragem)__

Compartilhar:

Artigos relacionados

O novo sucesso que os RHs não estão percebendo

As novas gerações estão redefinindo o conceito de sucesso no trabalho, priorizando propósito, bem-estar e flexibilidade, enquanto muitas empresas ainda lutam para se adaptar a essa mudança cultural profunda.

Quem pode mais: o que as eleições têm a nos dizer? 

Exercer a democracia cada vez mais se trata também de se impor na limitação de ideias que não façam sentido para um estado democrático por direito. Precisamos ser mais críticos e tomar cuidado com aquilo que buscamos para nos representar.