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Uma questão de valores

O que o atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo tem a ensinar para as empresas em termos de ética e valores? Clóvis de Barros Filho, professor de filosofia e ética, diz que a tragédia pode nos ajudar a aprender a tomar decisões que reflitam o mundo em que queremos viver

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> **Saiba mais sobre Clóvis de Barros Filho**
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> Quem é: Professor livre-docente de ética na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e ethical coach de executivos e empresas. 
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> Formação: Graduado em direito pela USP e em jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, com pós-graduação pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pela USP. 
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> Livros: Além de O Executivo e o Martelo, escreveu Ética na Comunicação, A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade, A Vida que Vale a Pena ser Vivida (com Arthur Meucci), O Habitus na Comunicação e Comunicação do Eu: Ética e Solidão.

Um episódio trágico como o atentado terrorista aos jornalistas do jornal satírico francês Charlie Hebdo é tão traumatizante que está obrigando todos nós a refletir, perplexos, sobre os valores que movem a sociedade. “Em pleno 2015, com tantos avanços, seria impensável alguém ser assassinado simplesmente por manifestar suas ideias”, afirma Clóvis de Barros Filho, professor de ética da Universidade de são Paulo (UsP) e palestrante corporativo. “e isso não ocorreu na periferia do planeta, mas no centro, à luz do dia, para todo mundo ver, fazendo com que seja um problema que concerne a todos nós”, continua. 

Para Barros Filho, a abordagem filosófica da tragédia pode ajudar a colocar em perspectiva os valores que nos orientam, não só em nossa vida pessoal, mas também dentro das empresas. em outros momentos da história, os valores –o único caminho para quem quer tomar decisões éticas– eram pautados pela moral e pela religião, e tudo ficava mais simples. Hoje, variam de cultura para cultura e são determinados pela liberdade individual. Muitas vezes, parecem-se com becos sem saída, como lembra o professor. O exemplo disso é o caso do Charlie Hebdo. 

Se, na sociedade ocidental, a liberdade de expressão é um valor inegociável, na cultura islâmica, o inegociável é a sátira à figura sagrada do profeta. ambos os lados foram fiéis a seus valores. A complexidade está, segundo Barros Filho, no choque cultural importante. só que a vida em sociedade exige uma tomada de posição em relação a essa complexidade, porque os diferentes precisam conseguir conviver. Fazer perguntas nos ajuda a tomar posição. Por exemplo, a questão sociocultural é definitiva para os valores? a maioria das pessoas que professam a fé islâmica respondeu que não, senão elas teriam apoiado o atentado, o que não ocorreu. 

Os muçulmanos devem ter respondido a outra pergunta também: o que é mais importante, a proteção à imagem do profeta contra a sátira ou a vida dos jornalistas? Mesmo com o valor atribuído à vida individual sendo diferente no ocidente e no Oriente, a resposta foi: “a vida dos jornalistas”. “o que o episódio do Charlie Hebdo nos ensina é que todas as perguntas relativas a valores nos levam a uma maior: em que mundo queremos viver?”, resume o professor.

> **E os valores dos Brasileiros?**
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> Um dos maiores incômodos de quem analisa os valores do Brasil pela lente da filosofia, de acordo com Clóvis de Barros Filho, é a visão de que o brasileiro quer tirar proveito de tudo e é, por natureza, preguiçoso e corrupto. “Essa visão é preconceituosa e, eu diria, até racista.” Segundo o professor, algumas viagens internacionais já mostram que a preguiça, por exemplo, é global. “Já trabalhei na França, na Espanha e na Alemanha, e posso garantir que os profissionais lá se esforçam menos que os brasileiros em seu trabalho, mesmo tendo benefícios iguais ou maiores”, afirma. “Vale para empresas. Acompanho a expansão do aeroporto de Berlim e posso dizer: teve início há 15 anos, já custou vários milhões de euros e as obras ainda estão no começo.” Sobre a malandragem, ele é ainda mais enfático. “Quantos de nós já não fomos levados na conversa na Itália, um dos berços da Europa?” Ele também faz comparações sobre a corrupção. “Sabe-se que empresas europeias têm índices de corrupção superiores aos das nossas.” Para Barros Filho, o exercício da ética é atrapalhado por essa autoimagem distorcida, pois, quando se atribuem as coisas erradas à cultura, foge-se das responsabilidades.

> **Martelando as empresa**
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> No livro O Executivo e o Martelo, publicado pela HSM Editora, Clóvis de Barros Filho, em parceria com Arthur Meucci, se inspira na ideia do filósofo alemão Nietzsche de golpear com um martelo as verdades cristalizadas e as fórmulas mágicas de sucesso.  A seguir, confira algumas provocações que o professor dirige  a empresas e gestores:
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> **LIBERDADE E PRIVACIDADE** “Em nossas organizações, falta um padrão de políticas que promovam liberdade e privacidade –o sistema bancário, por exemplo, não permite a manifestação de nenhum dos dois comportamentos a seus funcionários. E as empresas aqui ainda não acham tão importante colocar essas questões em debate, o que é preocupante.”
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> **TECNOLOGIA** “É normal haver dilemas éticos quanto à tecnologia. Esses dilemas são inerentes a evoluções tecnológicas como a que vivemos com a tecnologia da informação, a biogenética etc. O que falta, talvez, é os empresários brasileiros se aliarem às universidades para estudar os impactos das novas tecnologias no cenário global e especificamente no ambiente corporativo, bem como estudar os efeitos colaterais de cada nova ferramenta tecnológica.”
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> **MÉTRICA** “Empresas que discutem ética têm quatro ganhos evidentes, a meu ver: integração dos valores corporativos na cultura da empresa, maior consciência dos direitos e deveres pelos colaboradores, redução dos problemas trabalhistas e aumento da confiança dos investidores.”
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> **MARTELO NECESSÁRIO** “O que proponho é a ‘filosofia do martelo’ [termo de Nietzsche] nas corporações, que contribua para desconstruir as fórmulas prontas dos cases de sucesso e dos livros de autoajuda. Quando questionamos soluções prontas, temos de refletir sobre nossas ações e o que achamos certo e errado.” 
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> **INTERESSE DE 30%** “Acho que um terço dos gestores quer fazer marketing com a ética, um terço gosta do proselitismo da coisa e o outro terço leva o assunto a sério. Mas sinto que minhas palestras sobre ética nas organizações ao menos despertam o interesse sobre o assunto, fomentando discussões e pesquisa.” 
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> **ORIGEM DO MAL** “A ditadura militar retirou o ensino de filosofia e sociologia das escolas, causando, assim, um blecaute no ensino da ética. Essa é a origem de muitos de nossos problemas éticos. Quem se lembra da disciplina ‘Educação Moral e Cívica’? Era pura propaganda do regime, totalmente inútil. A falta de liberdade também atrofiou nossa capacidade de refletir sobre as próprias ações –é um fenômeno característico de sociedades que viveram ditaduras, como a Espanha e a Rússia. Passamos 40 anos sem filosofia e sociologia, várias gerações foram afetadas. Só em 2004 isso mudou.”
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> **INDEPENDÊNCIA** “A ética não é um valor corporativo; é uma reflexão sobre a vida, os valores, a felicidade –e, assim, engloba o trabalho. A ética contribui para entendermos que valores e soluções nos satisfazem, sem dependermos de um líder para nos dizer isso. A ética nos liberta para traçarmos nossos próprios caminhos.”

**NAS EMPRESAS**

Seja no caso do Hebdo, seja no dia a dia das empresas, o dilema dos valores é o mesmo. Gestores e profissionais deveriam perguntar-se diariamente: será que isso tem mesmo de ser do jeito que é? É preciso fazer questionamentos em cada decisão que inclui questões éticas complexas, segundo Barros Filho, ainda que seja para chegar à conclusão de que nada deve mudar. o modo como as empresas costumam lidar com seus valores tem similaridade com o dos terroristas de Paris. elas fazem uma lavagem cerebral relativa aos valores, espalhando-os em banners e outras formas de comunicação, mas raramente refletem criticamente sobre eles. 

“Os valores viram um mero jargão, uma frase que entra na moda e todo mundo usa, enquanto não chega a próxima moda”, explica o professor. Barros Filho apresenta provas concretas da falta de reflexão corporativa. “‘transparência’ faz parte da lista de valores de muitas empresas, mas como é possível haver transparência se a maioria dos contratos estabelecidos inclui cláusulas de confidencialidade? isso significa que transparência não é um valor real, nem é viável”, explica. 

Para o filósofo, a verdade é que as empresas sobrevivem sem transparência, mas não conseguem sobreviver sem sigilo. se isso tivesse sido minimamente avaliado, a transparência nunca teria entrado em uma lista de valores corporativos. Outro exemplo diz respeito ao valor “inovação”, presente em nove entre dez listas de valores organizacionais. “em boa parte dos casos, a inovação é só um desejo, porque o valor dominante na prática é o da tradição –a empresa é escrava de práticas do passado e da tradição, repete sempre os mesmos procedimentos, seu pessoal ‘sempre foi assim’”, comenta o professor. um terceiro exemplo tem a ver com a palavra da hora, “confiança”. “É um valor bonito, sem dúvida, mas há pessoas traiçoeiras no mundo dos negócios, e não podemos prescindir da desconfiança.” Confiança só pode ser um valor quando a empresa decide que confiará mesmo que isso lhe gere algum prejuízo. “viu como o gestor tem de escolher em que mundo quer viver?”

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