Uncategorized

A sagrada compliance

Será que as empresas estão usando algo equivalente à moral religiosa para aliviar suas culpas?
Psicanalista e psiquiatra, doutor em psicanálise e em medicina. Autor de vários livros, especialmente sobre o tratamento das mudanças subjetivas na pós-modernidade, recebeu o Prêmio Jabuti em 2013. É criador e apresentador do Programa TerraDois, da TV Cultura, eleito o melhor programa da TV brasileira em 2017 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Compartilhar:

O sacramento da confissão foi instalado nas empresas. Ele é chamado de “compliance”, assim mesmo, em inglês, possivelmente para aumentar a impressão de seriedade, como no tempo em que a missa era rezada em latim.

Compliance, diz a Wikipédia, “é o conjunto de disciplinas para fazer cumprir as normas legais e regulamentares, as políticas e as diretrizes estabelecidas para o negócio e para as atividades da instituição ou empresa, bem como evitar, detectar e tratar qualquer desvio ou inconformidade que possa ocorrer”.

As empresas disputam entre si os aperfeiçoamentos dos chamados mecanismos de compliance. Fazem listas de politicamente corretos que vão desde os presentes que se pode ou não receber até as formalidades protocolares de negociação, passando pela regulação de namoros, de indicação de amigos ou familiares e dos tamanhos das saias ou dos cabelos. Tudo deve estar previsto e, se mesmo assim algo escapar, há sempre um plantão para dirimir dúvidas de como manter o estado de graça.

Alcança-se assim o ideal do obsessivo, desconhecendo-se que atrás de um moralista com frequência mora a perversão. Uma vez estabelecida a regra a cumprir (que é o significado de compliance), se estabelece simultaneamente o caminho de como burlá-la. Quem não se lembra – aqueles de formação católica, que são muitos no Brasil – que em nossas infâncias e juventudes éramos educados a confessar nossos pecados? Pecávamos, confessávamos, cumpríamos a penitência e, pronto, voltávamos ao começo da fila: pecávamos, confessávamos, etc., em repetição infindável. Para os embevecidos parentes, especialmente as velhas tias, éramos os exemplos irretocáveis de virtude.

Mutatis mutandis, em consequência da operação Lava Jato, inúmeras cabines de confessionário foram instaladas nas empresas e catecismos de boa conduta amplamente distribuídos. Mesmo que seja uma grande operação para inglês ver, isso acalma os espíritos, pois, tal como a mulher de César, é fundamental parecer honesto. 

Empresas de marketing se especializam na divulgação das virtudes, executivos fazem media training de honestidade e até agentes do Bope viram palestrantes. Busca-se o aprimoramento contínuo das regras, na ilusória tentativa de tudo controlar. Não ouviram o jurista Miguel Reale Jr. afirmar que o preço da liberdade não é a eterna vigilância, como nos acostumamos a pensar, mas o preço da liberdade é o eterno delito?

A resposta à vergonhosa cultura da desonestidade que nos assola não está no modelo religioso de pecado e arrependimento. O que é fundamental é a criação de uma nova cultura na qual o prazer de participar dela seja maior que o delito do egoísta. Basta de nos iludirmos que o remédio que dói é o que cura. É não. O que cura é saber habitar um novo laço social horizontal e criativo, ao qual chamamos TerraDois.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Há um fio entre Ada Lovelace e o CESAR

Fora do tempo e do espaço, talvez fosse improvável imaginar qualquer linha que me ligasse a Ada Lovelace. Mais improvável ainda seria incluir, nesse mesmo

Tecnologias exponenciais
A aplicação da inteligência artificial e um novo posicionamento da liderança tornam-se primordiais para uma gestão lean de portfólio

Renata Moreno

4 min de leitura
Finanças
Taxas de juros altas, inovação subfinanciada: o mapa para captar recursos em melhorias que já fazem parte do seu DNA operacional, mas nunca foram formalizadas como inovação.

Eline Casasola

5 min de leitura
Empreendedorismo
Contratar um Chief of Staff pode ser a solução que sua empresa precisa para ganhar agilidade e melhorar a governança

Carolina Santos Laboissiere

7 min de leitura
ESG
Quando 84% dos profissionais com deficiência relatam saúde mental afetada no trabalho, a nova NR-1 chega para transformar obrigação legal em oportunidade estratégica. Inclusão real nunca foi tão urgente

Carolina Ignarra

4 min de leitura
ESG
Brasil é o 2º no ranking mundial de burnout e 472 mil licenças em 2024 revelam a epidemia silenciosa que também atinge gestores.
5 min de leitura
Inovação
7 anos depois da reforma trabalhista, empresas ainda não entenderam: flexibilidade legal não basta quando a gestão continua presa ao relógio do século XIX. O resultado? Quiet quitting, burnout e talentos 45+ migrando para o modelo Talent as a Service

Juliana Ramalho

4 min de leitura
ESG
Brasil é o 4º país com mais crises de saúde mental no mundo e 500 mil afastamentos em 2023. As empresas que ignoram esse tsunami pagarão o preço em produtividade e talentos.

Nayara Teixeira

5 min de leitura
Tecnologias exponenciais
Empresas que integram IA preditiva e machine learning ao SAP reduzem custos operacionais em até 30% e antecipam crises em 80% dos casos.

Marcelo Korn

7 min de leitura
Empreendedorismo
Reinventar empresas, repensar sucesso. A megamorfose não é mais uma escolha e sim a única saída.

Alain S. Levi

4 min de leitura