Narciso era uma criança tão bela que sua mãe, Liríope, preocupada, decidiu consultar um sábio sobre como criá-lo. Tirésias disse que o menino só teria vida longa se jamais visse a própria imagem. Mas, um dia, Narciso dirigiu-se a um lago e, ao ver sua imagem refletida ali, enlouqueceu de amor pelo próprio reflexo, sem olhos para mais nada. Mergulhou n’água e desapareceu em busca do objeto de sua paixão, sem reconhecer que era ele mesmo.
Partindo desse mito, a psicanálise desenvolveu o conceito de narcisismo, que remete à pessoa que nutre paixão por si mesma. Um tanto de amor próprio é necessário para confirmar e sustentar a autoestima, é claro, mas o exagero costuma ser prejudicial, não apenas ao convívio social como ao trabalho e à vida da pessoa.
Os negócios não escapam disso e, em especial, os negócios familiares. No Brasil, onde 90% de todos os negócios têm controle familiar, 70% deles morrem por não conseguir passar para a segunda geração. Segundo a consultoria PwC, apenas 8% das famílias empresárias se sentem preparadas para a sucessão de liderança dos negócios.
Minha hipótese é que uma das causas de as empresas familiares terem duração tão curta é algo de que quase não se fala: os fundadores ou líderes que apresentam traços narcisistas. Assim, impactam negativamente as relações entre os sócios familiares, dando origem a sérios conflitos, colaborando para a descontinuidade dos negócios e, consequentemente, comprometendo a transição. Narcisistas não delegam poder, não valorizam a educação de seus sucessores, não compartilham seus conhecimentos. Tais ações impactam negativamente não só o dia a dia da empresa como também as relações entre os membros familiares fora dela, podendo dar origem a conflitos e desalinhamento entre os sócios e, assim, ameaçando a sucessão e a continuidade do negócio.
Ao contrário da autoestima, qualidade indispensável à liderança, narcisismo é uma patologia. Dependendo do nível de narcisismo dos empreendedores familiares, a passagem de bastão e o planejamento sucessório ficam muito difíceis – às vezes, até impossíveis. Esse foi o tema do meu livro Sucessão ou morte da empresa familiar?.
**ENTENDENDO O NARCISISMO**
Inicialmente, Sigmund Freud (1856-1939) tratava o narcisismo como um estágio intermediário entre as fases do autoerotismo e do amor por objetos externos. Então, o próprio Freud propôs a existência de dois tipos de narcisismo: a) o primário, que corresponde à fase em que o próprio corpo constitui para o sujeito seu único objeto de desejo; e b) o secundário, no qual o objeto de satisfação não está mais num órgão, nem mesmo num conjunto de órgãos do corpo, mas no ego.
No mundo dos negócios, Kets de Vries e Miller afirmam que a liderança e o narcisismo têm estreita relação. Ao ocupar o cargo de liderança, o líder narcisista encontra o espaço necessário para sua manifestação. Mas vários estudos distinguem tipos positivos e negativos de narcisismo, como o de Lubit, que distingue o narcisismo saudável do destrutivo. O primeiro é caracterizado por uma autoconfiança baseada em sólida autoestima, que permite lidar com situações de estresse com facilidade. Já o segundo exibe autoconfiança como tentativa de esconder a fragilidade da autoestima, o que leva a não respeitar direitos alheios, tornar-se arrogante, menosprezar e explorar outras pessoas. Para Lubit, o narcisismo destrutivo também aumenta a ambição do sujeito por poder, levando o gestor a sacrificar tudo que cresce na organização. A ambição pelo poder pode transformá-lo em mestre no ato de manipular pessoas, fingindo que se preocupa com os outros, para atingir seus objetivos.
Não considera seu comportamento errado, pois se julga especial e merecedor de tratamento melhor do que os outros. A maioria de seus relacionamentos é marcada pelo menosprezo ao outro, por um sentimento de ter direito a tudo e pelo desinteresse pelos direitos alheios.
Às vezes, exibe fortes traços de personalidade paranoica. Projeta nos outros seus desejos e atitudes não aceitas. Pode ser desconfiado, suspeitoso, hipersensível, contestador e inclina-se a atribuir intenções maldosas aos outros. Vê o mundo como hostil e ameaçador, confia apenas em alguns subordinados e os agrada para que lhes sejam fiéis e exibam total devoção em troca. Quando os gestores narcisistas destrutivos adotam uma postura paranoica, sua capacidade de contribuir para a produtividade dos negócios se reduz drasticamente.
Na condução dos negócios, gestores narcisistas destrutivos afastam os melhores colaboradores, uma vez que não toleram o sucesso dos subordinados, sejam eles profissionais, sejam seus próprios filhos. Impedem o desenvolvimento de sua equipe e insistem em agir do seu modo. Não são empáticos e estão sempre prontos a explorar os demais.
O desafio da sucessão do líder narcisista de uma empresa tem um agravante. Para ele, ter de passar o bastão é como ter de aceitar o próprio envelhecimento e lidar com a morte. Isso é difícil para todos, mas especialmente para narcisistas destrutivos. Como reação, eles se agarram ainda mais ao poder em vez de delegá-lo à próxima geração no momento oportuno e o resultado, claro, é bastante destrutivo para as organizações. E confrontar tais líderes pode ser desastroso, pois não é incomum se tornarem agressivos ou paranoicos quando contrariados.
**MUDANDO O FOCO**
Minha hipótese é de que a influência de fundadores narcisistas em membros familiares pode causar grandes traumas e rupturas nos negócios. Foi isso que trabalhei em uma dissertação de mestrado no Insead, França, em 2016. Como procedimento, pensava inicialmente em entrevistar fundadores, compreendê-los e procurar ajudá-los. Porém meu orientador, o professor Roger Lehman, me aconselhou a seguir outro caminho: descobrir se tais impactos dos líderes narcisistas sentidos por seus herdeiros contribuem para a descontinuidade dos negócios – e, em caso afirmativo, como isso ocorre.
Segui esse caminho e os depoimentos recolhidos com sucessores confirmaram a tese: o processo sucessório se torna pouco provável ou mesmo impossível quando o fundador ou líder da empresa familiar possui traços narcisistas destrutivos. Fundadores narcisistas na maioria das vezes distorcem a imagem dos próprios fi lhos, pois não suportam a ideia de que alguém possa substituí-los. Costumam concentrar a atenção no crescimento de suas empresas e não medem esforços para atingir seus objetivos de poder, status, prestígio e superioridade, relegando a família a segundo plano. Não se dedicam a construir um relacionamento com seus fi lhos e netos, nem nutrem laços familiares de longo prazo, ingredientes fundamentais para a continuidade do legado familiar. Entre as consequências, além de conflitos em família, muitos irreversíveis, e de incontáveis problemas de natureza psicológica nos herdeiros, pode ocorrer a destruição da empresa familiar – e o desmantelamento da família.
Como pais e educadores, os fundadores narcisistas falham na educação e no direcionamento de seus filhos. O perfil manipulador e explorador, típico deles, retarda e até mesmo anula o desenvolvimento desses herdeiros. Eles têm suas identidades abaladas e seus planos pessoais adiados. Seduzidos por um sonho que não é o deles, vivem uma vida ilusória – e não se deixar influenciar por pais narcisistas é uma dura missão, bem como é difícil libertar-se de uma relação de dependência.
Ao quererem ser protagonistas de suas próprias histórias e se desvencilhar do negócio familiar, os sucessores geralmente sentem-se culpados. Diante de tanta cobrança e expectativa, permanecem amarrados aos padrões familiares. Um dia, cansados de desentendimentos constantes e da falta de alinhamento da família, acabam se afastando dos negócios e até mesmo rompendo relações familiares. E tudo isso contribui para a descontinuidade das empresas e a pulverização do legado familiar.
![](https://revista-hsm-public.s3.amazonaws.com/uploads/35a52796-1a12-444c-ba62-1bac2f522f2e.png)
**A MELHOR SOLUÇÃO**
“Freud sugere responsabilizar nossos pais por todas as falhas da nossa vida, e Marx sugere responsabilizar a classe social privilegiada. Mas o único responsável é o próprio indivíduo. É o que há de proveitoso na ideia hindu do carma. Sua vida é fruto do seu próprio fazer. Você não tem ninguém a quem responsabilizar, exceto a si mesmo.” Essa afirmação é de Joseph Campbell, o autor de _O poder do mito_, e descreve à perfeição a solução possível para as empresas familiares: além de entender que o verdadeiro problema é o narcisismo dos líderes, promover uma mudança de comportamento dos herdeiros. Foi o que vi acontecer com alguns herdeiros entrevistados, com ótimos resultados.
Como os herdeiros podem mudar o comportamento?
A reconstrução da identidade é o passo número um para essa mudança, e passa pelo encontro com a verdadeira vocação, que decorre da busca por autoconhecimento por meio de processos de individuação. Sem um processo de individuação e autoconhecimento, somos prisioneiros do nosso passado. É necessário entender quem somos e tomar consciência de nossos padrões de comportamento. A busca pelo crescimento pessoal é um processo de aprendizado longo e doloroso. Somente assim é possível ser autor da própria história.
Desprender-se dos tentáculos de um fundador narcisista é tarefa difícil, mas não impossível. É preciso encarar o temor de se desconstruir e, então, reunir todas as forças para se reconstruir. É preciso procurar saber quem você é, qual sua verdadeira vocação e aonde quer chegar. Há histórias únicas de empresas que passaram por guerras, contratempos, dramas e crises, mas, ainda assim, se mantiveram unidas e saudáveis, graças à resiliência e criatividade da família. Qual o segredo de resistir durante séculos? Como podemos aprender com essas famílias que perpetuaram seus negócios por tanto tempo?
Acredito que a longevidade de empresas familiares depende acima de tudo de relações familiares equilibradas, fundamentais para proporcionar mudanças verdadeiramente eficazes e positivas no empreendimento, ao longo do tempo.
O segundo passo é a educação, que traz novas perspectivas, gera amadurecimento e fortalece os membros da família. Como assevera Randel Carlock, o conhecimento melhora o capital humano e aumenta a vantagem competitiva das famílias empresárias. A cada geração, os desafios da empresa mudam, os jogadores mudam e até as regras podem ser mutáveis. O importante é que os sucessores se reinventem e, ao mesmo tempo, mantenham o DNA e os valores da empresa e da família.
É preciso abrir espaço para a educação. Há uma história de um famoso mestre Zen que foi abordado por um de seus discípulos, ávido por aprender mais sobre os seus conhecimentos. O mestre, então, convidou-o para tomar chá. Quando o chá estava quase pronto, o mestre começou a servi-lo, mas quando a xícara estava praticamente cheia, o mestre continuou a servir, deixando o chá transbordar. O discípulo, espantado, interrompeu o mestre e perguntou por que ele estava fazendo aquilo, ao que o mestre respondeu: “Sua mente é como uma xícara de chá. Está totalmente cheia e não existe espaço para o novo. Dessa forma, não consigo lhe ensinar nada. Vá embora e volte somente quando sua mente tiver espaço para um novo aprendizado”, relata Kets de Vries no livro Leader on the couch.
Assim como a capacitação conta muito, a construção de autonomia, decorrente do encontro com a vocação, também é fundamental. É ela que permite não se deixar abalar por quem tem poder ou por quem controla o dinheiro; é ela que liberta a pessoa da dinâmica quem-manda-e-quem-obedece.
Canais de comunicação familiar são outro aspecto da solução. Não significa que todos pensarão do mesmo modo ou que farão as mesmas coisas, mas uma boa comunicação facilita muito o alinhamento.
Tudo isso ajudará a aceitar que os pais também têm medos, traumas e padrões comportamentais que prejudicam seu desenvolvimento emocional – uma postura madura que precisa acontecer e pode ser uma saída. É evidente que há sofrimento nesse processo, por requerer “matar” emocionalmente os pais. Conseguir perdoá-los, ter uma postura não infantilizada em sua presença e não vitimizar-se na relação com eles é uma dura missão, mas possível.
É isso que pode fazer as famílias empresárias abrirem a caixa-preta das emoções, encarar seus dramas de forma aberta e corajosa, colocar na mesa assuntos “velados” de forma transparente e, assim, conseguir superar os desafios intangíveis da sucessão.
Lembro que, no mito de Narciso há mais uma personagem: Eco. Trata-se de uma jovem que se apaixona por Narciso, é rejeitada por ele e acaba condenada a repetir o que dizem os outros pela eternidade, sem voz própria. O que me dei conta é que as empresas familiares conseguem ser duradouras só quando Eco – nesse caso, representante de todos os outros membros da família – adquire voz própria.