Saúde Mental

Burnout: não confunda a CID 11 com a CID 10

A partir da 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID), a OMS passou a reconhecer o burnout como síndrome relacionada ao esgotamento profissional devido ao estresse crônico não administrado adequadamente
Hugo Ferrari Cardoso é psicólogo e autor do material *EBburn - escala brasileira de burnout*, publicado pela Vetor Editora. Ele também é mestre, doutor, pós-doutor em Psicologia, docente universitário pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Compartilhar:

Abordar a temática do burnout implica também em se discutir sobre os diversos contextos e condições de trabalho impostas pelo mercado nas vidas dos indivíduos. Sabe-se a importância que as tarefas profissionais representam nas vidas dos seres humanos, em especial no início da idade adulta. Uma característica relevante é que o trabalho tende a remunerar financeiramente as pessoas.

Quantas vezes escutamos (e falamos) que “só conseguirei ir a um determinado compromisso depois do trabalho” ou então “não poderei fazer essa atividade porque tenho que trabalhar”, dentre outros discursos parecidos, no dia a dia? Em uma sociedade capitalista, o trabalho tende a desempenhar um papel quase que central em nossas vidas, e é por intermédio dele que organizamos uma rotina, adquirimos bens materiais e ocupamos grande parte de nossos dias.

Além disso, pode proporcionar situações que geram bem-estar e qualidade de vida, bem como são contextos propícios para as interações sociais e profissionais; por outro lado, grandes especialistas da área revelam que esses contatos podem também depender da percepção dos trabalhadores, gerar adoecimento e acarretar uma série de complicações para a saúde física e mental.

Atualmente, psicólogos respeitados no setor abordam que o trabalho tem demandado uma série de competências profissionais (conseguir trabalhar sob pressão, administrar conflitos interpessoais, ser resiliente, lidar adequadamente com situações estressantes etc) que, em médio e longo prazo, podem gerar danos, principalmente para a saúde mental.

É neste escopo que quero falar sobre o tema central deste texto, o burnout. Antes de explicar melhor suas características, convém informar que a Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, em sua 10ª edição (também conhecida como Classificação Internacional de Doenças – CID 10), considera características próximas ao que se entende como burnout na atualidade como fazendo parte do grupo classificatório Z73 (problemas relacionados com a organização de seu modo de vida). Entretanto, a partir de 2022, a OMS, com a 11ª edição da CID, passou a reconhecer o burnout como síndrome relacionada ao esgotamento profissional em virtude de estresse crônico não administrado adequadamente.

Há o consenso entre autores especialistas na área de que o burnout não é sinônimo de estresse ocupacional, mas sim decorrente dele. De acordo com autoridades no tema, a inabilidade em lidar com os estressores ocupacionais poderá gerar burnout, ou seja, não possuir estratégias de enfrentamento quanto aos estressores ocupacionais pode, em médio prazo, levar ao esgotamento emocional. Alguns estressores são bem documentados na literatura nacional e internacional como, por exemplo: a precária organização do ambiente laboral, o excesso de carga de trabalho, percepção negativa em relação às interações humanas na organização, remuneração e benefícios insuficientes, conflitos com a liderança, baixa autonomia na execução do trabalho etc.

## Mas o que vem a ser o burnout?
Existem alguns modelos que explicam o fenômeno, como o defendido pela psicóloga americana Christina Maslach e outros colaboradores, como um processo gradual e psicossocial, tendo as características do trabalho como suas principais causadoras. Este modelo postula a presença de três fatores: exaustão emocional, despersonalização e a baixa realização profissional.

Por exaustão emocional os autores referem-se ao fato de que, a partir das demandas excessivas no ambiente de trabalho (grande presença de estressores), os trabalhadores, não mais possuindo estratégias de enfrentamento, passam a experimentar a carência de energia e de entusiasmo. A despersonalização pode ser identificada pelo distanciamento afetivo e impessoal no trabalho, muitas vezes associados a comportamentos de cinismo e indiferença com clientes e demais trabalhadores. Experts da área contam que a baixa realização profissional acontece quando o trabalhador, já exausto e distanciado das relações, passa a se culpabilizar pela situação em que se encontra, evidenciando sentimentos de incapacidade profissional e baixa motivação para continuar a trabalhar.

Com a regulamentação do burnout a partir da CID-11 (2022), o transtorno está/estará ainda mais em evidência nos contextos laborais, em especial nas perícias médicas. Há mais de uma década, um estudo analisou o conhecimento sobre o burnout de uma equipe que realizava perícias em uma junta médica de um município localizado na região Nordeste do Brasil; como resultado, foi constatado um precário conhecimento dos profissionais em relação ao burnout. Além disso, os autores realizaram o levantamento dos transtornos mentais que afastaram trabalhadores no período, sendo os principais, com base na classificação da CID-10, os episódios depressivos, outros transtornos ansiosos, reações ao estresse grave e transtornos de adaptação, transtorno depressivo recorrente, transtorno fóbico-ansioso, transtornos psicóticos agudos e transitórios , transtorno de humor, transtornos psicóticos não orgânicos, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno afetivo bipolar, dentre outros.

Embora a CID-10 não contemple diretamente o burnout, mas sim características, como fazendo parte do grupo de pessoas com problemas relacionados com a organização de seu modo de vida, não foi encontrado no estudo supracitado tal diagnóstico. Com a publicação da CID-11, o burnout ganha/ganhará evidência ainda maior, com critérios diagnósticos mais bem definidos, o que, possivelmente, pode gerar o aumento da frequência de diagnósticos e, consequentemente, afastamentos das atividades laborais a partir da segunda década do século 21.

Por fim, cabe o alerta para profissionais que atuam em saúde mental ao fato de que no diagnóstico de burnout, bem como dos demais transtornos, uma avaliação ampla deve ser realizada, levando em consideração os diversos sintomas e possíveis prejuízos nas vidas desses trabalhadores. Além disso, a utilização de uma abordagem multimétodo é esperada, com utilização de entrevistas, observação, bem como ferramentas com adequadas propriedades psicométricas que possam auxiliar o profissional neste processo.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Há um fio entre Ada Lovelace e o CESAR

Fora do tempo e do espaço, talvez fosse improvável imaginar qualquer linha que me ligasse a Ada Lovelace. Mais improvável ainda seria incluir, nesse mesmo

Tecnologias exponenciais
A aplicação da inteligência artificial e um novo posicionamento da liderança tornam-se primordiais para uma gestão lean de portfólio

Renata Moreno

4 min de leitura
Finanças
Taxas de juros altas, inovação subfinanciada: o mapa para captar recursos em melhorias que já fazem parte do seu DNA operacional, mas nunca foram formalizadas como inovação.

Eline Casasola

5 min de leitura
Empreendedorismo
Contratar um Chief of Staff pode ser a solução que sua empresa precisa para ganhar agilidade e melhorar a governança

Carolina Santos Laboissiere

7 min de leitura
ESG
Quando 84% dos profissionais com deficiência relatam saúde mental afetada no trabalho, a nova NR-1 chega para transformar obrigação legal em oportunidade estratégica. Inclusão real nunca foi tão urgente

Carolina Ignarra

4 min de leitura
ESG
Brasil é o 2º no ranking mundial de burnout e 472 mil licenças em 2024 revelam a epidemia silenciosa que também atinge gestores.
5 min de leitura
Inovação
7 anos depois da reforma trabalhista, empresas ainda não entenderam: flexibilidade legal não basta quando a gestão continua presa ao relógio do século XIX. O resultado? Quiet quitting, burnout e talentos 45+ migrando para o modelo Talent as a Service

Juliana Ramalho

4 min de leitura
ESG
Brasil é o 4º país com mais crises de saúde mental no mundo e 500 mil afastamentos em 2023. As empresas que ignoram esse tsunami pagarão o preço em produtividade e talentos.

Nayara Teixeira

5 min de leitura
Tecnologias exponenciais
Empresas que integram IA preditiva e machine learning ao SAP reduzem custos operacionais em até 30% e antecipam crises em 80% dos casos.

Marcelo Korn

7 min de leitura
Empreendedorismo
Reinventar empresas, repensar sucesso. A megamorfose não é mais uma escolha e sim a única saída.

Alain S. Levi

4 min de leitura