Enquanto o Vale do Silício entra em pânico e monta uma ‘sala de crise’ para entender como a startup chinesa DeepSeek conseguiu superar modelos de inteligência artificial consagrados como ChatGPT, Llama e Gemini, a ascensão dessa tecnologia não representa um avanço democrático ou ético. Embora a IA chinesa prometa acessibilidade e código aberto, a realidade geopolítica e os interesses estratégicos por trás desse desenvolvimento mostram que a disputa segue sendo travada entre gigantes como OpenAI, Google, Meta, Microsoft, Anthropic e agora a DeepSeek: todos competindo por hegemonia tecnológica sem uma preocupação genuína com os impactos políticos e sociais dessa tecnologia.
Fundada em 2023 por Liang Wenfeng e impulsionada por Luo Fuli, jovem pesquisadora prodígio de IA, a DeepSeek conseguiu em menos de dois anos o que levou a OpenAI quase cinco anos para alcançar. Seu modelo mais recente, o DeepSeek R1, superou o ChatGPT em downloads e benchmarks, sendo mais eficiente na resolução de problemas matemáticos, programação e raciocínio lógico. A grande vantagem? Custo operacional até 95% menor que os principais concorrentes.
Com um treinamento que custou US$6 milhões – uma fração dos US$100 milhões estimados para o ChatGPT-4 – e utilizando chips menos avançados, a DeepSeek desafia a narrativa de que apenas os EUA detêm a tecnologia mais sofisticada de IA. Esse fato tem levado analistas a comparar sua ascensão ao “momento Sputnik” – uma referência ao impacto do lançamento do primeiro satélite soviético, que redefiniu a corrida espacial e acendeu um alerta vermelho nos Estados Unidos.
Acessível, mas controlada: os limites da IA ‘aberta
A DeepSeek defende uma abordagem de código aberto, o que supostamente permitiria um maior acesso a modelos avançados de IA, sem as barreiras de licenciamento impostas por empresas ocidentais. No entanto, essa “democratização” não significa ausência de viés ou transparência. O modelo segue as diretrizes ideológicas do Partido Comunista Chinês, censurando temas sensíveis como o Massacre da Praça da Paz Celestial (1989), a independência de Taiwan e a autonomia de Hong Kong. O DeepSeek também reproduz a posição oficial de Pequim em temas como a Guerra da Ucrânia e a situação em Gaza, alinhando-se à diplomacia chinesa.
Enquanto OpenAI e Google adotam abordagens ambíguas sobre temas políticos, evitando se comprometer diretamente, a IA da DeepSeek age como um porta-voz estatal, reproduzindo discursos alinhados ao governo de Xi Jinping. Isso mostra que, embora a China tenha conseguido driblar as sanções dos EUA e desenvolver um modelo competitivo, sua IA não é um espaço neutro de informação. O Grande Firewall digital agora se estende ao mundo, travestido de inovação tecnológica.
O avanço da DeepSeek não está acontecendo no vácuo. Ele se insere em um cenário geopolítico de disputa entre EUA e China pela liderança em IA, onde os dois lados competem para garantir sua hegemonia tecnológica e econômica. Os Estados Unidos restringiram a exportação de chips avançados para a China desde 2023, apostando que isso limitaria o desenvolvimento chinês. Mas a DeepSeek provou que é possível construir modelos avançados mesmo com hardware limitado, lançando dúvidas sobre a eficácia das sanções.
No entanto, o problema central dessa corrida não está apenas na competição entre empresas ou na luta por domínio geopolítico, mas sim na falta de um debate sério sobre regulação, impactos sociais e governança da IA. Quem controla essa tecnologia? Como evitar que sistemas de IA sejam usados para reforçar desigualdades, vigilância e desinformação? Como garantir que o desenvolvimento da IA não esteja apenas concentrado nas mãos de poucos atores poderosos?
Atualmente, a IA é desenvolvida e controlada por um pequeno grupo de corporações e Estados, que priorizam seus próprios interesses em detrimento de uma regulação global robusta. O caso da DeepSeek expõe essa realidade: enquanto seu código aberto pode ser visto como um avanço na acessibilidade da IA, sua censura ideológica e alinhamento com os interesses do Partido Comunista Chinês mostram que o verdadeiro controle dessa tecnologia continua concentrado nas mãos dos mais poderosos.
O discurso de que a IA pode ser um agente democratizador da informação se desmancha quando olhamos para o contexto global. A briga não é pela criação de uma IA mais ética e inclusiva, mas sim pelo controle de quem define as regras do jogo.
No fim, estamos testemunhando uma batalha entre leões, onde o impacto da IA nas sociedades é secundário. Enquanto governos e corporações disputam a hegemonia tecnológica, o mundo ainda carece de uma regulamentação eficiente, centrada na transparência, no respeito aos direitos humanos e na mitigação dos danos que essa tecnologia pode causar.
Se há algo a aprender com o avanço da DeepSeek, não é apenas sua capacidade de inovação ou a velocidade com que abalou o Vale do Silício. É o fato de que, sem um debate global e políticas sólidas de governança, a IA continuará sendo um instrumento de poder nas mãos de poucos e, inevitavelmente, utilizada para reforçar os interesses dos mais fortes.