Tecnologia e inovação, Liderança

Ferramentas de gestão para lidar com crises

É notório que vivemos uma crise sem precedentes. A disrupção causada pela COVID-19 não está afetando apenas nossa saúde, mas também nossos padrões de consumo, nosso jeito de trabalhar e até mesmo as estruturas organizacionais. Como lidar com esSe novo contexto? Estas quatro ferramentas de gestão podem ajudar
CEO da Qura Editora, sócio do Grupo Anga, administrador de formação, foi vice-presidente da Confederação Nacional de Empresas Juniores em 2014 e é conselheiro do Instituto Capitalismo Consciente Brasil.

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Já sabíamos que o mundo era VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo, no acrônimo em inglês), mas acredito que ninguém esperava que fosse “tão VUCA”. O nível de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade causado pelo novo coronavírus nos leva a crer que a pergunta que temos que responder como gestores não é quando a próxima crise acontecerá, mas o que podemos fazer para lidar com ela. Até porque o trabalho de um líder e gestor não é, pelo menos a princípio, o de prever o futuro. Como disse Ray Dalio, lendário fundador do Fundo Hedge Bridgewater Associates, “aquele que vive pela bola de cristal acabará comendo cacos de vidro”.

E como lidar com ela? Seria presunçoso e irresponsável tentar criar um roteiro sobre como lidar com essa crise, ainda em curso. Mas se olharmos atentamente para a vasta literatura de gestão disponível no mercado, encontraremos ferramentas aplicáveis a esta e outras situações difíceis no dia a dia da gestão. A seguir, destaco quatro frameworks que tenho utilizado e que acredito serem relevantes para agirmos em cenários de muita incerteza.

**1. CYNEFIN FRAMEWORK: PARA ENTENDER A NATUREZA DOS PROBLEMAS E TOMAR DECISÕES**

A primeira experiência que temos com resolução de problemas se dá, normalmente, ainda na escola, no ensino de matemática. Aprendemos que certos problemas têm soluções padrão, e que se utilizarmos os métodos certos vamos sempre alcançar os resultados certos. Esse modelo de pensamento se expande para nossa carreira profissional mesmo sem percebermos, e é comum ouvirmos falar das “melhores práticas de gestão” como receitas a serem seguidas para alcançar bons resultados. Mas sabemos, hoje mais do que nunca, que nem sempre as “melhores práticas” nos ajudam a lidar com situações novas. Afinal, novos problemas demandam novas soluções.

Para entendermos como reagir aos diferentes tipos de situações, podemos usar o Cynefin Framework, um modelo mental criado por Dave 

Snowden, fundador e diretor científico da Cognitive Edge, uma empresa de consultoria em gestão com sede em Singapura, especializada em complexidade e criação de sentido.

O Cynefin divide os contextos de tomada de decisão, ou seja, as situações em que vivemos, em quatro tipos – óbvias, complicadas, complexas e caóticas –, e que exigem diferentes formas de agir.

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**Problemas óbvios:** surgem em situações estáveis, em que a relação entre causa e efeito é clara: se você faz X, espera Y. Problemas matemáticos são, no geral, dessa natureza. Nesse caso, Snowden sugere como abordagem perceber o problema, entender a categoria no qual ele se encaixa e respondê-lo. É um contexto no qual de fato é possível definir uma “melhor prática”.

**Problemas complicados:** são problemas no qual encontrar a relação entre causa e efeito requer algum nível de expertise, pois existem diversas soluções possíveis. Um problema complicado tradicional pode ser um problema mecânico: diversas variáveis podem estar causando um defeito, precisamos analisar o problema e chegar numa conclusão do que deve ser resolvido. Para esses contextos, Snowden sugere como abordagem a percepção, ou seja, o levantamentos dos fatos, a análise da causa que gerou cada fato e a resposta com uma ação. Nesse contexto, não há como definir uma “melhor prática”, mas “boas práticas”, especialmente de análise, são viáveis. Grande parte dos problemas de natureza científica se encaixam nesse contexto.

**Problemas complexos:** são problemas no qual causa e efeito só podem ser deduzidos em retrospecto, e não há respostas corretas para os problemas. Esses problemas não podem ser resolvidos com uma abordagem reducionista, do tipo divida o problema e veja como as partes funcionam, porque suas próprias ações mudam a situação de maneiras imprevisíveis. Bons exemplos de problemas complexos são questões econômicas, de cultura organizacional ou até mesmo campos de batalha. Para lidar com eles, Snowden sugere começar sondando o problema, ou seja, tentar entendê-lo melhor por meio de discussões de grupos diversos, ou de testes simples e baratos para perceber a reação do sistema, para aí sim agir. Nesse contexto, as práticas que existem são emergentes, e não necessariamente eram previsíveis. Grande parte dos problemas que envolvem comportamento humano são complexos.

**Problemas caóticos:** em contextos caóticos, procurar respostas corretas seria inútil. É impossível determinar as relações entre causa e efeito porque elas mudam constantemente e não existem padrões, apenas turbulência. Eventos como calamidades públicas se enquadram nessa categoria. O papel do líder não é entender o problema, e sim “parar a sangria”, segundo Snowden. Na prática, isso significa que é preciso agir e fazer o que é necessário, como primeira reação. Porém, é fundamental a percepção de como o sistema reagiu, para aí sim extrair lições ou práticas dali. Quase toda prática gerada numa situação caótica é uma prática nova.

**Como utilizar**

Para utilizar o Cynefin Framework, primeiro é necessário entender a natureza do problema e depois criar um plano de ação utilizando as premissas de Snowden. Considerando o contexto atual, o líder pode criar soluções padrão para lidar com questões óbvias, protocolos de resolução de problemas que exigem análise ou até organizar grupos de discussão para lidar com os mais complexos. Sem entender a natureza de um problema, tentar resolvê-lo do jeito errado pode gerar mais frustração do que resultado.

**2. ESTRATÉGIA DO HALTERE: PARA ALOCAR RECURSOS DE FORMA MAIS INTELIGENTE**

Um dos nossos principais instintos como seres humanos é o de aversão ao risco. Ele existe fundamentalmente para garantir nossa proteção e sobrevivência. Em um momento de crise, esse instinto muitas vezes assume o controle, nos impedindo de correr riscos. Para lidarmos melhor com isso, podemos utilizar a Estratégia Barbell, ou “Estratégia do haltere”, em tradução literal, modelo mental para gerenciar riscos em investimentos criado por Nassim Nicholas Taleb, autor de livros best-sellers como Antifrágil e A lógica do cisne negro.

Segundo Taleb, a estratégia consiste em garantir que 90% do seu capital esteja seguro e os 10% restantes sejam alocados em investimentos arriscados. Para o autor, essa alocação de recursos diminui significativamente os riscos negativos, ou seja, a chance de se perder muito dinheiro sem deixar de aproveitar as oportunidades de riscos positivos, quer dizer, a chance de ter retornos desproporcionalmente maiores. 

Esse modelo criado por Taleb é de importância ainda maior em situações de crise porque, em um primeiro momento, a ação mais importante para o gestor é, de fato, a de se proteger e minimizar ao máximo seus riscos, ou seja, usando a linguagem financeira, diminuir seu downside. Para isso, é fundamental minimizar gastos, renegociar prazos e tentar identificar fontes imediatas de liquidez.

Porém, a Estratégia Barbell deixa claro que apenas diminuir a exposição ao risco não é o melhor caminho. Ao sobreviver à crise, a manutenção das linhas de negócio atuais não gerará resultados superiores ou deixará a empresa mais apta ao novo cenário. Caso haja alterações significativas no mercado, como a mudança nos hábitos de consumo, é possível que a postura de se agarrar aos investimentos existentes seja contrária à sobrevivência de longo prazo. Nesse contexto, é fundamental alocar parte dos recursos em ações que possam gerar resultados superiores, por exemplo, criando novas linhas de receita.

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**Como utilizar**

A Estratégia Barbell pode ser utilizada no redesenho do orçamento da empresa em um momento de crise. Logicamente, a crise exige o corte de custos e despesas que podem ser evitados, assim como o congelamento de grande parte dos investimentos, especialmente os que trazem benefícios marginais. A empresa deve focar grande parte dos seus recursos na sobrevivência, ou seja, na diminuição do risco. Porém, para sair mais forte da crise, é fundamental que uma parte pequena dos recursos seja investida no desenvolvimento de novas linhas de receita, como novos produtos e serviços. Uma possibilidade, para exemplificar, é uma empresa de consultoria que vende projetos longos alocar 10% do seu time de consultores na construção de soluções escaláveis e digitais, de custo menor, mas com maior abrangência. Caso essa estratégia dê errado, 10% dos recursos foram perdidos. Caso dê certo, pode se tornar uma fonte de receita considerável em relação ao negócio original.

**3. BRYAN SMITH: PARA ENGAJAR O TIME NAS MUDANÇAS NECESSÁRIAS**

Em situações de crise, é importante que um líder seja rápido e decisivo na construção de uma nova visão, seja de como superar a crise ou de como a empresa será quando sair dela. Porém, tal abordagem pode, inadvertidamente, gerar desengajamento e passividade nos colaboradores. Bryan Smith, professor de educação e sociologia da York University e coautor do livro A quinta disciplina: caderno de campo, propõe uma estratégia para aumentar o engajamento do time em relação à visão da organização. Para Smith, existem cinco principais níveis de engajamento do time com a visão, e a empresa deve buscar sempre um nível superior de engajamento. 

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**Nível 1 – Contar:** “Temos que fazer isso, é nossa visão. Fique empolgado ou reconsidere sua carreira aqui dentro.” É com essa frase que 

Smith ilustra o primeiro nível de engajamento. Nesse nível, o gestor, ou time sênior, define a visão para a organização e conta para os demais o que deve ser feito. Para que funcione bem, é necessário que o gestor seja claro e consistente na comunicação, que conte a verdade quanto à realidade atual e que seja preciso em relação ao que é negociável e o que não é na nova visão.

**Nível 2 – Vender:** “Nós temos uma ótima visão. Eu preciso que você faça parte dela.” O segundo nível de engajamento consiste em “vender” a nova visão para o time. A responsabilidade pela construção do que será feito ainda é do gestor, mas ele busca uma aceitação maior de todos, para diminuir a chance de os esforços serem sabotados. Nesse modo de comunicação, o gestor deve deixar canais abertos para que as pessoas possam se expressar sobre a visão, buscar ativamente a aceitação sem manipular e focar os benefícios de se seguir aquela direção.

**Nível 3 – Testar:** “O que te deixa empolgado nessa visão? O que não deixa?” No terceiro nível de engajamento, o gestor deve validar a visão que criou com o time, buscando ativamente feedback sobre o que foi definido. Para que esse processo funcione, o líder deve providenciar o máximo de informações sobre a visão para as pessoas e criar formas de coletar suas opiniões. Além disso, é fundamental que o gestor seja capaz de identificar o quanto as pessoas se sentem motivadas e capazes de alcançar o que foi definido.

**Nível 4 – Consultar:** “O que vocês recomendam que façamos?” O nível de consulta é para líderes que acreditam que não possuem todas as respostas e podem aproveitar a inteligência coletiva do time para construir a visão. Nesse modo de comunicação, o gestor procura a opinião do time sobre o que fazer antes de construir a visão em si, servindo de juiz em relação ao que deve fazer parte da visão final, mas buscando contemplar as diferentes opiniões. Para funcionar, esse modo de comunicação requer a criação de mecanismos práticos de coleta de opiniões, como formulários, entrevistas e grupos de discussão.

**Nível 5 – Cocriar:** “Vamos construir o futuro que queremos individual e coletivamente.” O último nível de engajamento é sobre envolver o time no que realmente querem ver no futuro. No caso da crise, é sobre construir o papel da empresa no novo mundo que está surgindo. Para isso, o propósito e a visão da empresa são indissociáveis do propósito e da visão das pessoas, que requerem algum nível de autoconhecimento para trazerem seus inputs. Para que isso funcione, muitos elementos são necessários: a empresa deve investir no autoconhecimento dos colaboradores, incentivar a diversidade nos times, buscar formas de fazer todos serem ouvidos e criar bons espaços de conversa. Embora seja o mais difícil de aplicar, o modo de cocriação é o mais poderoso, pois as pessoas enxergam de forma clara sua contribuição.

**Como utilizar**

Deve o gestor focar a eficiência e o direcionamento inequívoco, úteis no curto prazo, ou o engajamento e a autonomia, fundamentais para o longo prazo? Não há resposta certa para essa pergunta. Mas entendendo as diferenças de cada um dos níveis, o gestor pode focar sempre buscar evoluir – começar, por exemplo, construindo um plano de curtíssimo prazo por conta da crise e “vender” para o time, ao invés de apenas “contar”. 

**4. FREDERIC LALOUX: PARA DISTRIBUIR RESPONSABILIDADES DE FORMA MAIS EFICIENTE**

Em situações complexas, ou até mesmo caóticas, dificilmente estruturas hierárquicas são a melhor opção para organizar o time. Isso se dá porque situações complexas exigem uma velocidade na tomada de decisão e adaptabilidade que dificilmente permitem o ciclo completo em que a informação sobe na hierarquia e desce na forma de decisões tomadas. Muitas vezes as decisões precisam ser tomadas onde a informação nasce.

Para isso, modelos de gestão autogeridos, que foram popularizados por Frederic Laloux no livro Reinventando as organizações, destacam-se como estratégia para deixar a organização mais ágil e adaptável, e, consequentemente, mais resiliente para lidar com crises. Tais modelos, que preconizam a autonomia local e a adaptabilidade da organização, pressupõem que, se tiverem acesso às informações, clareza sobre suas responsabilidades e bons métodos de tomadas de decisão, as pessoas agirão alinhadas aos interesses da organização.

As estruturas autogeridas possuem diversas ferramentas úteis para lidar com situações de crise, mas uma parece extremamente útil para aumentar a agilidade: a descrição dos papéis. O papel, termo usado em diversos sistemas de autogestão, como Holacracia e Sociocracia, nada mais é do que um conjunto de responsabilidades para ser adotado por uma ou mais pessoas. Porém, diferentemente da descrição de cargo de uma organização hierárquica, em que se define as responsabilidades de forma geral, cabendo aos gestores preencher os “espaços cinzentos” de responsabilidade com decisões e regras, o papel possui uma descrição inequívoca a ser seguida pela pessoa, aumentando consideravelmente o alinhamento e diminuindo a necessidade de supervisão. Essa ferramenta pode ser utilizada de diversas formas, mas três elementos do papel são fundamentais:

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**1. Propósito/Objetivo:** Para quê eu faço o que faço no time/organização? Para responder a essa pergunta, o time busca definir o que é esperado como resultado final do cumprimento daquele conjunto de responsabilidades. Poderia se dizer que o objetivo, por exemplo, é minimizar a quantidade de chamados dos clientes, ou aumentar o volume de vendas. É importante que a pessoa tenha clareza de quando está fazendo um bom trabalho.

**2. Responsabilidades:** O que se espera que eu faça e como medir? Nesse ponto, é recomendável descrever as responsabilidades iniciando por um verbo no infinitivo (fazer, comunicar, vender etc.), indicando a ação esperada e ajudando a reconhecer responsabilidades não muito claras (por exemplo, gerenciar ou acompanhar). Com um conjunto claro de responsabilidades, o time pode definir como medir se elas estão sendo cumpridas ou não, minimizando conflitos causados por expectativas diferentes.

**3. Domínio/Autoridade:** Sobre o que eu tenho autonomia para decidir? Qual o critério? Por último, é necessário que a pessoa incumbida daquele conjunto de responsabilidades entenda qual a sua autoridade de decisão. Sobre o que ela pode decidir sem precisar consultar seus colegas ou escalar na organização? Definindo bons contornos de decisão, o gestor pode minimizar o possível impacto negativo das decisões, sem abrir mão de agilidade. Por exemplo, algumas descrições de autoridade poderiam ser: realizar despesas de vendas cujo valor não ultrapasse certo limite; aprovar artes caso estejam de acordo com os critérios estabelecidos no manual da marca; definir precificação de propostas desde que sigam a política Y. Dessa forma, o gestor pode dedicar seu tempo às decisões que realmente exigem seu esforço e avaliação, distribuindo melhor a autoridade sob as demais.

**Como utilizar**

A descrição de papel funciona como um grande processo de alinhamento de expectativas entre o time. Uma das formas de utilizá-la é iniciar descrevendo a realidade atual, ou seja, o time como é hoje, em relação aos três blocos acima. A partir disso, conversas podem ser promovidas para refinar cada um dos papéis, clareando ainda mais as expectativas que um tem sobre o outro. Ao final, o gestor pode não só validar o que foi proposto, como incorporar novas responsabilidades ou novas autoridades, de forma a descentralizar algumas das decisões que toma. Com expectativas claras, responsabilidades inequívocas e autoridades distribuídas, os times podem gastar menos tempo com alinhamentos e reuniões, e passar mais tempo performando e atendendo às demandas que surgem no dia a dia.

**FUTURO**

É impossível prever todos os impactos da crise atual ou ainda quando virá uma nova. Um bom gestor nunca terá todas as respostas. Mas, tendo uma boa caixa de ferramentas que nos ajude a entender melhor o que está acontecendo, a construir melhores planos de ação e a alocar esforços e recursos, podemos não apenas ajudar nossa organização a lidar melhor com a crise como também aumentar a chance de que saia ainda mais forte dela.

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