Artigo

O mundo decodificado

Literatura de não ficção fala do real com recursos literários, transformando conhecimento em aventura
Escritor, professor de criação literária e doutor em Psicologia pela USP. Foi finalista dos prêmios Oceanos (2015), Jabuti (2014) e São Paulo de Literatura (2008). Mantém o canal Escrita Criativa (https://escritacriativa.net.br/), de orientação e formação para escritores.

Compartilhar:

Curioso como um livro, uma música, um perfume podem marcar uma época da vida. Ainda recordo vividamente uma leitura de faculdade, um capítulo de A interpretação das culturas, de Clifford Geertz. O texto dizia da importância de não presumir os sinais do mundo, não julgar que entendemos o que significam, e partir sempre do lugar da incerteza. Para compreender os hábitos de uma etnia, o autor dá o exemplo de uma piscadela. Como interpretar esse simples gesto? Ele pode ser um código específico, um alerta, uma reprimenda. Pode ser um indício de cumplicidade, um tique nervoso, uma imitação jocosa. Nada pode ser pressuposto.

Aos 18 anos, a importância daquela reflexão me pareceu evidente, ainda que por razões não tão “elevadas”. Eu quebrava a cabeça para entender os sinais das garotas que me interessavam. Aquela piscadela: foi apenas uma prova de amizade ou ela gosta de mim? Aquele sorriso é mais intenso comigo ou ela é simpática assim como todo mundo? Para um adolescente tímido, uma interpretação equivocada poderia ser desastrosa. É assustador como a expectativa bagunça as nossas faculdades perceptivas, e a intenção do observador parece aumentar ainda mais a confusão. Se você fica olhando um objeto azul por tempo demais, em algum momento ele parecerá vermelho.

Nos anos recentes, o recurso à dúvida e à observação atenta nos parecem imprescindíveis. Na era da informação, não estamos menos confusos com os signos do mundo, e talvez isso se deva à forma como eles nos chegam: fora de contexto, fragmentados, como cápsulas de dados, ilusoriamente claros e inequívocos, apelando às reações mais viscerais. Acolhemos esse modo de transmissão porque nos falta tempo, e nosso foco é disputado por uma centena de outros chamarizes. Essa suposta eficácia dos fatos, das notícias, contudo, nunca nos pareceu tão frágil. Quanto mais isolada uma verdade, mais sujeita está a adulterações, mais vulnerável ao viés das nossas opiniões.

Existe uma corrente de escritores que parece ter percebido isso há tempos. São os autores de não ficção. Ensaístas e investigadores que não acreditam que possamos retirar os textos dos contextos, os dados dos fenômenos, o crime da cena em que foi cometido. Eles querem contar a história toda, e creem que a real objetividade, sempre limitada, só pode ser derivada da inclusão do que é subjetivo: das expectativas e dos devaneios do observador. O resultado é uma aventura do conhecimento. O leitor passa um tempo numa experiência imersiva, vivendo tudo aquilo como se fosse ele mesmo o investigador. Para isso, os autores de não ficção se valem de elementos da ficção: você sente que está lendo um romance, e enquanto aprende com determinada realidade, anseia pelo desenlace.
Os “fatos” investigados são amplos como as variedades da experiência humana. A consagrada escritora Joan Didion teve a coragem, em seu O ano do pensamento mágico, de escrever sobre a perda do marido, atingido por um infarto fulminante.

Nada mais pessoal, nada mais difícil de fazer que escrutinar o próprio estado mental numa situação extrema. Mas há também o caso de Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer, o resultado hilário do convite de uma revista de turismo ao escritor David Foster Wallace para que contasse sua experiência de alguns dias em um transatlântico de luxo.

Essas obras desmontam a armadilha das simplificações. Se você lê O dilema do onívoro, do jornalista Michael Pollan, dificilmente enxergará o ato de comer da mesma maneira. Para entender a cadeia de produção, o autor esmiuça as escolhas dos agricultores e chega a comprar uma vaca para acompanhá-la na linha de produção industrial. Descreve os sentimentos contraditórios em um abatedouro “humanizado” e coloca um nugget de frango em um espectômetro de massa para entender a origem de cada uma de suas moléculas.

Em um livro como A terra inabitável, David Wallace-Wells nos faz o favor de reunir as pesquisas mais recentes sobre o aquecimento global, e aí se vê a diferença entre acompanhar as atualidades a partir de notícias isoladas ou integrá-las na complexa teia de controvérsias políticas e investigações científicas. Uma coisa é ler nos jornais sobre as enchentes em Manaus e o desaparecimento de uma praia em Florianópolis. Outra é entender a combinação desses elementos com o derretimento do permafrost no Ártico e a morte abrupta de dois terços da população de uma espécie de antílopes da Ásia Central.

Existem muitas outras leituras imperdíveis de obras de não ficção. Calor, de Bill Buford, acompanha o jornalista na cozinha profissional de uma restaurante estrelado em Nova York. Lua de mel em Kobane, de Patricia Campos Mello, conta a saga de um casal que luta para sobreviver nas regiões de conflito da Síria e do Iraque. No impressionante Em busca de um final feliz, Katherine Boo, vencedora do Pulitzer, passou um ano em uma favela na Índia para contar a história de alguns de seus moradores. O segredo de Joe Gould narra a curiosidade obstinada do jornalista Joseph Mitchell para ler as páginas de um escritor que vive nas ruas. Há também o labiríntico A mulher calada, de Janet Malcolm, falecida há pouco, que tenta compreender a vida da poeta Sylvia Plath nos meses que precedem o seu suicídio.

Nessas e em outras obras difíceis de largar, a realidade se revela mais surpreendente que a ficção. Muito mais complexa. E, muitas vezes, mais inverossímil.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Há um fio entre Ada Lovelace e o CESAR

Fora do tempo e do espaço, talvez fosse improvável imaginar qualquer linha que me ligasse a Ada Lovelace. Mais improvável ainda seria incluir, nesse mesmo

Tecnologias exponenciais
A aplicação da inteligência artificial e um novo posicionamento da liderança tornam-se primordiais para uma gestão lean de portfólio

Renata Moreno

4 min de leitura
Finanças
Taxas de juros altas, inovação subfinanciada: o mapa para captar recursos em melhorias que já fazem parte do seu DNA operacional, mas nunca foram formalizadas como inovação.

Eline Casasola

5 min de leitura
Empreendedorismo
Contratar um Chief of Staff pode ser a solução que sua empresa precisa para ganhar agilidade e melhorar a governança

Carolina Santos Laboissiere

7 min de leitura
ESG
Quando 84% dos profissionais com deficiência relatam saúde mental afetada no trabalho, a nova NR-1 chega para transformar obrigação legal em oportunidade estratégica. Inclusão real nunca foi tão urgente

Carolina Ignarra

4 min de leitura
ESG
Brasil é o 2º no ranking mundial de burnout e 472 mil licenças em 2024 revelam a epidemia silenciosa que também atinge gestores.
5 min de leitura
Inovação
7 anos depois da reforma trabalhista, empresas ainda não entenderam: flexibilidade legal não basta quando a gestão continua presa ao relógio do século XIX. O resultado? Quiet quitting, burnout e talentos 45+ migrando para o modelo Talent as a Service

Juliana Ramalho

4 min de leitura
ESG
Brasil é o 4º país com mais crises de saúde mental no mundo e 500 mil afastamentos em 2023. As empresas que ignoram esse tsunami pagarão o preço em produtividade e talentos.

Nayara Teixeira

5 min de leitura
Tecnologias exponenciais
Empresas que integram IA preditiva e machine learning ao SAP reduzem custos operacionais em até 30% e antecipam crises em 80% dos casos.

Marcelo Korn

7 min de leitura
Empreendedorismo
Reinventar empresas, repensar sucesso. A megamorfose não é mais uma escolha e sim a única saída.

Alain S. Levi

4 min de leitura