Mary del Priore é uma sumidade quando o assunto é história do Brasil. Ex-professora da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), com pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, optou por disseminar seu vasto conhecimento para o grande público.
Com mais de 50 livros publicados e vencedora de vários prêmios nacionais e internacionais, del Priore aborda temas que atiçam a curiosidade, como a história das crianças, das mulheres, das famílias e da sexualidade no Brasil. Em sua última obra, *[Guerreiras e Sobreviventes: Uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000](https://www.amazon.com.br/Sobreviventes-guerreiras-hist%C3%B3ria-mulher-brasil/dp/655535156X/ref=asc_df_655535156X/?tag=googleshopp00-20&linkCode=df0&hvadid=379792431986&hvpos=&hvnetw=g&hvrand=7409238535375723910&hvpone=&hvptwo=&hvqmt=&hvdev=c&hvdvcmdl=&hvlocint=&hvlocphy=1001650&hvtargid=pla-950272456507&psc=1)*, vencedora do Prêmio Jabuti em 2021, a historiadora apresenta a trajetória de mulheres que souberam resistir ao patriarcado. Livro essencial para se entender o porquê de, até hoje, ser fundamental discutir a igualdade de gênero no País.
## 10 – Hoje vemos as mulheres ocupando posições de liderança e protagonismo nas organizações, que é resultado de um processo de lutas das mulheres. Como o trabalho feminino se desenvolveu na história do Brasil?
A participação da mulher brasileira na história do trabalho é bem antiga. Sendo o Brasil um país agrícola, já víamos a presença do trabalho feminino no campo. As mulheres detinham saberes sobre plantio e colheita e cuidavam de terras para sobreviver e sustentar suas famílias.
No final do século 18, com a urbanização do País, elas começaram a abrir pequenos comércios em áreas como alimentação, costura e serviços nas cidades, o que permitiu uma mobilidade social.
A partir do século 19, houve uma presença feminina importante na industrialização, em particular na tecelagem e na indústria de fumo, que absorveu um número grande de trabalhadoras. No entanto, elas trabalhavam 16 horas por dia em ambientes insalubres, eram molestadas e ganhavam bem menos do que os homens. Isso suscitou a reação das mulheres, que começaram a fazer greves exigindo melhores condições de trabalho.
## 09 – Um posicionamento que ficou ainda mais consistente e organizado no século 20. Em que medida a luta das brasileiras ao longo do tempo ajudou na equidade de gênero no mercado de trabalho?
No começo do século 20, entre as décadas de 1930 e 1950, as mulheres ocupavam cargos ditos femininos, por exemplo, telefonistas, secretárias ou comerciantes nas cidades brasileiras. Mas era principalmente como professoras que elas se faziam presentes no mercado de trabalho, já que esta era uma carreira compatível com a figura feminina, que, além de trabalhadora, deveria ser boa esposa, mãe e dona de casa.
Foi só nos anos 1960, com a revolução sexual e a chegada da pílula, que a mulher passou a se ver de outra forma, buscando mais protagonismo na sociedade. No pós-ditadura, muitas intelectuais exiladas voltaram ao Brasil com teorias feministas na bagagem. Na década de 1980, várias matizes políticas se uniram na Assembleia Constituinte de 1988 para criar uma agenda coletiva que pudesse empoderar a mulher. Foram anos de muitas conquistas, que marcaram a progressiva ascensão feminina no mercado de trabalho e na sociedade brasileira, sendo a educação a principal promotora desse caminho.
## 08 – Você menciona o papel das professoras e outras profissões de caráter intelectual como agentes de transformação. Por que a educação é tão importante para a ascensão profissional da mulher?
A educação está associada ao progresso do trabalho feminino no Brasil. Ela permitiu à mulher migrar da vida privada para a pública e mudou o perfil da mulher que trabalha fora, desde as primeiras professoras e bibliotecárias até quando começaram a integrar, como pioneiras, as faculdades do País.
Hoje, o Brasil forma mais mulheres do que homens nas universidades. Inclusive, nas camadas desfavorecidas, muitos deles dão prioridade para o estudo das filhas e irmãs. Esse investimento na educação feminina é de fundamental importância para que elas subam ainda mais os degraus na escalada profissional. Sem educação, a mulher até consegue sua independência econômica, mas não sobrevive às intempéries do tempo. Eu sempre digo que é a educação que emancipa a mulher.
## 07 – Olhando para a história das mulheres brasileiras, podemos afirmar que elas dominavam – e continuam dominando – uma visão de cultura de negócios?
Sem dúvida, desde quando se aventuravam no comércio de retalhos ou vendiam secos e molhados. A própria informalidade do trabalho no Brasil revela o quanto de criativo essas mulheres têm e, mais do que isso, o desejo muito grande de ter as próprias economias. Muitas delas, além da dupla jornada, se dedicam a uma terceira atividade para fortalecer suas finanças. Nesse aspecto, eu diria que a criatividade da mulher brasileira faz com que ela consiga migrar de um campo para outro com facilidade. Por exemplo, uma intelectual que chega em casa e faz trabalhos manuais. Essa diversidade de aptidões e o desejo de independência fortalecem muito o papel da mulher como agente econômico ativo da sociedade.
## 06 – E qual o caminho para destacar e fortalecer esse papel da mulher como agente de desenvolvimento econômico?
Eu acredito que nós, historiadores, dedicamos muitas décadas estudando a escravidão e, à medida que fomos nos debruçar sobre o trabalho livre, passamos a encontrar muitas trajetórias de mulheres que são donas de seus projetos de vida e responsáveis pelo desenvolvimento econômico do Brasil em diferentes áreas. Acho importante contar e dar visibilidade à história dessas mulheres. Tudo isso mostra que a economia não é um tema indecifrável para elas. Muito pelo contrário, as mulheres são capazes de articular explicações sobre temas que às vezes ganham uma linguagem mais difícil quando estão numa voz masculina. Normalmente, elas conseguem traduzir a economia com facilidade. E não estamos falando só sobre a economia doméstica, mas a economia do País. Não tenho dúvidas de que, em breve, teremos uma ministra da Fazenda no Brasil.
## 05 – Você acredita que ainda existe resistência dos homens ao trabalho feminino?
Desde os primórdios dos tempos, o trabalho feminino sofre com a resistência dos homens. Durante muitos séculos, o papel da mulher era ser mãe de família, dona de casa, viver da porta para dentro, no espaço privado. Esse era um valor muito arraigado em toda a sociedade, independentemente de classe ou ideologia. Para você ter uma ideia, eu me lembro de uma história da escritora Zélia Gattai, filha de um anarquista (e autora do livro [Anarquistas, Graças a Deus](https://www.amazon.com.br/Anarquistas-gra%C3%A7as-Deus-Z%C3%A9lia-Gattai/dp/8535913912)). Ela conta que sua irmã mais velha, vendo o pai em dificuldades financeiras, se propôs a trabalhar fora, e a resposta do velho anarquista foi que lugar de mulher era na cozinha. Ou seja, no fundo, os anarquistas, que eram tão liberais da porta para fora, tinham o mesmo olhar patriarcal quando o assunto era mulher.
## 04 – E por que o patriarcado é uma característica tão forte e arraigada na cultura brasileira?
O patriarcado brasileiro é herança de três culturas que formaram nossa sociedade. Não somente do patriarcado ocidental cristão – que sempre viu a mulher como um ser biologicamente inferior –, mas também do patriarcado africano, extremamente dominador. E não podemos esquecer o papel dos indígenas, que, segundo os arqueólogos, também possuíam a divisão sexual do trabalho: homens na caça e mulheres nas aldeias, cuidando da alimentação, das crianças e dos velhos.
Mas eu não vejo o patriarcado com esse estigma do homem predador o tempo todo. Venho chamando atenção para o fato de o patriarcado ser tão nocivo para os homens quanto para as mulheres, porque exige deles um papel ideal, de provedor, sexualmente potente, sempre forte. Essa cobrança permanente em cima dos homens também nasce do patriarcado e tem consequências nefastas para eles.
## 03 – Como, então, coibir o patriarcado em nossa sociedade atual?
Não vamos coibir comportamentos considerados machistas se não tentarmos entender como é construída a virilidade do homem brasileiro. Ele passa a infância ouvindo que homem não chora, que precisa ser forte. Como arrancar desse homem sua parte mais frágil?
Nós temos de conversar sobre isso e lembrar sempre que os homens não são nossos inimigos. Eles são nossos companheiros, nossos pais e nossos irmãos. É preciso olhar essas relações com menos antagonismo e buscar mais o que há de comum entre homens e mulheres.
Eu acho que as novas gerações vêm dando um banho de sabedoria nesse sentido. Vejo jovens casais compartilhando as tarefas domésticas, o cuidado com os filhos e procurando oferecer uma educação mais libertária. Eu acho que estamos caminhando para uma sociedade muito mais tolerante.
## 02 – Algumas empresas têm procurado incluir cada vez mais as mulheres em seus conselhos de administração, existe inclusive a discussão sobre cotas. Você acredita que isso pode ser bom para as corporações?
As cotas sempre provocam uma certa tensão, porque elas aparentemente violam os princípios da meritocracia. No entanto, elas tornam o recrutamento nas empresas muito mais transparente e dão visibilidade à força e à capacidade da mulher. Mas é importante que isso não fique só num âmbito simbólico, para cumprimento de números. É preciso também dar a essas mulheres as condições de desempenhar seus cargos de chefia. E atentar ainda para as grandes diferenças de classe e étnico-raciais. Porque, em geral, as mulheres que já estão dentro das empresas são aquelas que tiveram melhores condições, e é importante levar isso em consideração. De novo, a aposta na educação é fundamental.
## 01 – Para terminar, quais de seus livros você indicaria sobre o tema mulheres e mercado de trabalho, e por quê?
O meu último livro – Guerreiras e Sobreviventes: uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000 – é, sem dúvida alguma, aquele livro em que eu discuto não só o desempenho protagonista da mulher brasileira em várias frentes, mas também sua independência econômica e a forma como ela soube lidar com as diversas dificuldades que enfrentou. Nossa história mostra que a brasileira sempre procurou se reinventar, achar um espaço, resistir, e podemos aprender com o exemplo de muitas dessas mulheres. Esse é um livro importante porque também convida o homem para a conversa. O patriarcado não vai acabar por decreto. É preciso olhar para o que nos une, e não o que nos separa.