Direto ao ponto

Polarização

Mas a liberdade de um começa com a liberdade do outro
Psicanalista e psiquiatra, doutor em psicanálise e em medicina. Autor de vários livros, especialmente sobre o tratamento das mudanças subjetivas na pós-modernidade, recebeu o Prêmio Jabuti em 2013. É criador e apresentador do Programa TerraDois, da TV Cultura, eleito o melhor programa da TV brasileira em 2017 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Compartilhar:

Polarização é um dos principais fenômenos da nova era e que faz muita gente sofrer. Na polarização não se conversa, não se negocia, não se argumenta. A base é uma só: se não concordo com você, te anulo, te desprezo, te deleto, te mato. Amigos históricos se afastam, nem se telefonam com medo de surgir “aquele assunto”. Famílias não compartilham o peru de Natal. Amantes se estranham.
Como surgiu a polarização? Ela é um típico produto da mudança de era, da nova civilização – chamo-a de TerraDois – que estamos iniciando. Passamos a uma arquitetura horizontal, plana, em rede, depois de 28 séculos de arquitetura vertical do laço social expressa em três grandes períodos éticos: cósmico (de oito séculos a.C. até três séculos d.C.), divino (de três séculos d.C. até o século 18), iluminista (do século 18 ao final do século 20).

Nos períodos verticais, quem ocupava o lugar do padrão, da transcendência que nomeia cada período, mudava, mas um novo padrão consistia. Assim, mesmo havendo disputas duras, o polo era um só. Agora que temos um laço social horizontal não há um padrão orientador ao qual se adaptar ou contra o qual se rebelar; temos uma pletora de padrões. A cada um seu padrão, a cada um sua escolha, a cada um sua razão. Não existe medida única, nem hierarquia orientadora. O homem desbussolado se aferra a seu norte, mesmo que para um outro ali seja sul. Vivemos o período da questão trágica, assim falou Hegel, que explica esse profundo mal-estar atual.
Uma questão trágica ocorre quando opiniões divergem entre si, com igual valor de verdade. Por exemplo: quem tem razão, o hoteleiro que se preparou para a sua profissão, que paga impostos de sua atividade, ou o proprietário de uma residência que a coloca para alugar no Airbnb? Quem tem razão, o taxista que oficializou sua profissão, ou o proprietário de um carro que quer trabalhar como motorista da Uber? Todos têm razão, isso é o trágico.

A matriz cultural da questão trágica foi encenada por Sófocles, em Antígona. Etéocles e Polinice, seus irmãos, combinaram se alternar no trono vago de Tebas, dado o desaparecimento de Édipo, pai dos dois. Etéocles, se excedendo em seu mandato, foi atacado por Polinice, que pleiteava a combinada alternância. Os dois morreram em combate. Creonte, irmão de Jocasta e tio deles, assume o poder e manda realizar as honras fúnebres para Etéocles, enquanto Polinice, que tinha atacado o reino, deveria ter seu corpo deixado insepulto como pasto às aves de rapina. Era justo, conforme a lei da cidade. Antígona, ao saber disso, exigiu o mesmo tratamento honroso de sepultura a seu irmão Polinice. Era justo, conforme a lei do sangue, da família. Quem tem razão, Creonte ou Antígona? Os dois. Mas qual é a razão maior, a lei da cidade ou a do sangue? Equivalem-se.

O consenso não é mais realizável devido à equivalência de valor-verdade entre opiniões contrárias. Temos que aprender com a psicanálise a articular as diferenças, na desistência de um senso comum. Contrariamente aos iluministas, que preconizavam que a liberdade de um começa onde termina a do outro, hoje temos que constatar que a liberdade de um começa com a liberdade do outro.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Calendário

Não, o ano ainda não acabou!

Em meio à letargia de fim de ano, um chamado à consciência: os últimos dias de 2024 são uma oportunidade valiosa de ressignificar trajetórias e construir propósito.

Cultura organizacional, Empreendedorismo
A ilusão da disponibilidade: como a pressão por respostas imediatas e a sensação de conexão contínua prejudicam a produtividade e o bem-estar nas equipes, além de minar a inovação nas organizações modernas.

Dorly

6 min de leitura
ESG
No texto deste mês do colunista Djalma Scartezini, o COO da Egalite escreve sobre os desafios profundos, tanto à saúde mental quanto à produtividade no trabalho, que a dor crônica proporciona. Destacando que empresas e gestores precisam adotar políticas de inclusão que levem em conta as limitações físicas e os altos custos associados ao tratamento, garantindo uma verdadeira equidade no ambiente corporativo.

Djalma Scartezini

4 min de leitura
Gestão de Pessoas
A adoção de políticas de compliance que integram diretrizes claras de inclusão e equidade racial é fundamental para garantir práticas empresariais que vão além do discurso, criando um ambiente corporativo verdadeiramente inclusivo, transparente e em conformidade com a legislação vigente.

Beatriz da Silveira

4 min de leitura
Inovação, Empreendedorismo
Linhas de financiamento para inovação podem ser uma ferramenta essencial para impulsionar o crescimento das empresas sem comprometer sua saúde financeira, especialmente quando associadas a projetos que trazem eficiência, competitividade e pioneirismo ao setor

Eline Casasola

4 min de leitura
Transformação Digital, Estratégia
Este texto é uma aula de Alan Souza, afinal, é preciso construir espaços saudáveis e que sejam possíveis para que a transformação ocorra. Aproveite a leitura!

Alan Souza

4 min de leitura
Liderança
como as virtudes de criatividade e eficiência, adaptabilidade e determinação, além da autorresponsabilidade, sensibilidade, generosidade e vulnerabilidade podem coexistir em um líder?

Lilian Cruz

4 min de leitura
Gestão de Pessoas, Liderança
As novas gerações estão redefinindo o conceito de sucesso no trabalho, priorizando propósito, bem-estar e flexibilidade, enquanto muitas empresas ainda lutam para se adaptar a essa mudança cultural profunda.

Daniel Campos Neto

4 min de leitura
ESG, Empreendedorismo
31/07/2024
O que as empresas podem fazer pelo meio ambiente e para colocar a sustentabilidade no centro da estratégia

Paula Nigro

3 min de leitura
ESG
Exercer a democracia cada vez mais se trata também de se impor na limitação de ideias que não façam sentido para um estado democrático por direito. Precisamos ser mais críticos e tomar cuidado com aquilo que buscamos para nos representar.
3 min de leitura