fb-embed

5 min de leitura

Negros, empoderamento e o mercado de trabalho

Ainda que o título seja sugestivo, preciso começar com um alerta. O tema e o texto não devem interessar apenas ao negro e, inclusive, não se resumem ao negro, mas a todo o cidadão brasileiro, pois todos nós somos, direta ou indiretamente, afetados pelos mecanismos de reprodução do racismo.

Raphael Vicente

03 de Junho

Compartilhar:
Artigo Negros, empoderamento e o mercado de trabalho

Sim, é uma constatação difícil de absorver, mas você é afetado pelo racismo! Querendo ou não. Mas essa conversa é para um outro dia. 

Você teria uma boa resposta a seguinte pergunta: Como o término da escravidão e os índices atuais de negros em cargo de chefia no mercado de trabalho se relacionam? Uma possível resposta seria que: com o término da escravidão os negros não tiveram acesso ao mercado de trabalho.

Essa resposta é simples, não está errada, mas não nos ajuda muito. E por quê? Por um lado, os negros não tiveram acesso ao mercado de trabalho, mas, por outro, também não tiveram acesso à educação. Então, qual das conclusões estariam corretas? A falta de acesso ao mercado de trabalho ou a educação seria o principal motivo a justificar a baixa representatividade de negros nos cargos de liderança no mercado de trabalho?

Há também outras questões que surgem imediatamente: existia um sistema de ensino que atende a todos, como temos hoje? Como era o mercado de trabalho? Lembrem-se, a abolição da escravatura ocorreu formalmente em 1888, mas seus contornos começam em 1850. 

A ideia dessa conversa realmente não é trazer todas as respostas, mas as perguntas que em regra não nos ocorrem. Não é possível entender claramente a questão racial no Brasil e seus efeitos no mercado de trabalho sem minimamente atentar-se ao seu contexto histórico.

Empoderar-se, palavra largamente utilizada, refere-se a adquirir poder ou mais poder. No caso, libertar-se da narrativa que nos foi imposta, das condições que moldam, constituem e aprisionam o indivíduo, no caso, o indivíduo negro. 

Pausa, nesse ponto a questão ficou intrincada, complexa e até um tanto subjetiva. Acontece quem em regra, em toda nossa vida de estudante, ensino fundamental, médio, etc, nunca nos foram apresentados os complexos sistemas que envolvem o ser humano e o seu comportamento. 

Por exemplo, toda a ideologia racial, ao menos quanto ao negro no Brasil, está baseada em cinco fatores essenciais: cor da pele, formato da boca, nariz, olhos e cabelo. Nada mais. Toda a tragédia humana que decorreu a partir daí, sustentou-se e sustenta-se até hoje, através destes elementos de distinção que determinam a percepção do outro em relação ao negro.

Está amplamente difundido e arraigado no imaginário do brasileiro, negro e não-negro, que o negro é o pobre, o bandido, o preguiçoso, malcheiroso, inapto para cargos de liderança, chefia, direção, entre outros. 

Continuando, em 1999, o Mapa da População Negra no mercado de trabalho, apontou que em São Paulo, apenas 6% dos trabalhadores negros ocupavam postos de trabalho de direção e de planejamento, sendo que nos postos de trabalho de execução está a maioria dos ocupados de etnia negra, sendo 60%.

Hoje, 21 anos depois, o percentual de negros mantém-se o mesmo, dependendo do recorte da análise, até recuou. Mulheres negras, literalmente contam-se nos dedos.  

Vamos nos empoderar, ou seja, entender ou analisar resumidamente o sistema que opera até os nossos dias. 

Uma forma de entendermos o presente é analisar o passado e observarmos como chegamos até aqui. No nosso caso, observar a formação do mercado de trabalho em São Paulo. 

Uma das consequências mais importantes da escravidão, segundo Karl Monsma (2016) e dos seus desdobramentos racistas nas primeiras décadas após a abolição é o que denomina de “mercado de trabalho cindido”.

A sociedade racista admitia o negro como escravo; para o trabalho livre trouxe o europeu, alegando que os negros não tinham mentalidade para se integrarem aos modos de produção modernos. 

Ironicamente o negro perdeu importância ao se transformar em homem livre: não conseguiu a emancipação nem atingiu o estágio de trabalhador engajado nas novas formas de produção que surgiram no país. 

A imigração ganhou força no final da década de 1870, sendo que em 1886, por sugestão do governador da província e com apoio de fundos do Estado, a Sociedade Promotora da imigração, de cunho privado, foi estabelecida para coordenar a campanha de São Paulo para atrair trabalhadores europeus. Em 1895, tais funções foram assumidas pelo Departamento de Agricultura do Estado de São Paulo. 

Quando os imigrantes chegaram, os sociólogos e cientistas brasileiros ocuparam-se com pesquisas e escritos que demonstrassem a eles próprios a ao mundo como o Brasil estava rapidamente se transformando – de um lugar atrasado e miscigenado que parecia mais um canto da África que uma nação do Novo mundo em uma república progressista povoada por europeus e seus descendentes.   

Entretanto, em sua grande maioria os imigrantes europeus que vinham para o Brasil também era analfabeta ou lia muito pouco. 

Na cidade e no campo, os imigrantes desfrutavam da mesma preferência na contratação. O censo de 1893 da Cidade de São Paulo mostrou que 72% dos empregados do comércio, 79% dos trabalhadores das fabricas, 81% dos trabalhadores do setor de transportes e 86% dos artesão eram estrangeiros; o Correio Paulistano estimou que 80% dos trabalhadores do setor de construções eram italianos; e um estudo de 1912 sobre a força de trabalho em 33 indústrias têxteis do Estado  descobriu que 80% dos trabalhadores têxteis eram estrangeiros, a grande maioria italianos.

No começo do século XX, 92% dos trabalhadores industriais na cidade de São Paulo eram estrangeiros, sobretudo de origem italiana. 

Os negros estavam quase que totalmente barrados do trabalho nas fabricas, e os artesão negros desapareceram por completo da cidade. Os negros pobres e pertencentes a classe trabalhadora, encontraram suas oportunidades de trabalho restritas ao sérvio doméstico e ao que hoje poderia ser denominado de setor informal. 

Agora empoderado, talvez tenha ficado um pouco mais claro, na atualidade, a questão racial e o mercado de trabalho e como ele ainda reproduz muito do seu pensamento desde as suas origens. 

Obviamente, além do papel do Estado, a sociedade civil tem um importante papel a desempenhar. 

Um exemplo de intervenção é o movimento o qual coordeno, chamado Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, lançado em 2016,  com o objetivo de engajar um dos maiores agentes de transformação social, ou seja,  o empresariado, o qual, através da redefinição das suas práticas e da sua cultura organizacional, pode protagonizar, com impressionante velocidade, desde que sensível e atento a tais demandas, a promoção do respeito a todas as pessoas, considerando os segmentos da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, desigualdade e exclusão, como a população negra.

Por tudo isso, fica evidente que são necessárias ações transversais, multidisciplinares, complexas, no esforço de levar o conhecimento da nossa formação histórica, e, a partir da constatação de erros, redefinir nossas práticas, conceitos, cultura e hábitos, no ambiente corporativo, pessoal e social.

Compartilhar:

Autoria

Raphael Vicente

Sócio de Vicente & Vicente Advogados; Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP e Coordenador da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial.

Artigos relacionados

Imagem de capa A revolução musical na era do streaming: conexões, diversificação e experiências

Transformação Digital

05 Maio | 2024

A revolução musical na era do streaming: conexões, diversificação e experiências

A expectativa de vida cresceu consideravelmente, chegando a 76 anos em alguns pontos no Brasil, então: é hora de reconhecer o poder econômico e os hábitos de consumo dessa população madura e diversa, que representa uma oportunidade valiosa para os negócios.

Kika Brandão

5 min de leitura

Imagem de capa Gestão e performance: um lego com muitas peças para acomodar

Gestão de pessoas

03 Maio | 2024

Gestão e performance: um lego com muitas peças para acomodar

Reiterar antigos passos e compreender novos fazeres cada vez mais serão necessários neste futuro em desenvolvimento

Athila Machado

4 min de leitura

Imagem de capa O Desafio de gerar desconforto produtivo

Gestão de pessoas

02 Maio | 2024

O Desafio de gerar desconforto produtivo

Você já ouviu falar em cultivar um desconforto produtivo? Realmente faz sentido seguir com isso? Confira as dicas práticas para entender este fenômeno, que já existe e precisa ser melhor compreendido

Carol Olinda

4 min de leitura