Na Grande Atlanta, nos Estados Unidos, uma menina de 9 anos queria participar, com a família, de uma competição de raids de Pokémon GO, em que vence quem consegue coletar mais prêmios nas batalhas virtuais. Só que Alice é filha de Bryan Yockey, pesquisador-assistente do departamento de estatística e ciências analíticas da Kennesaw State University, da Geórgia, e este resolveu tratar a brincadeira como se fosse um PCV (problema de caixeiro-viajante), aquele no qual se tenta otimizar, em tempo e custo, a rota para um vendedor visitar diferentes clientes e retornar ao ponto de origem. O desafio dessas raids é considerável, seja pela limitação de tempo – os eventos, por exemplo, duram três horas –, seja porque é preciso vencer o chefe Pokémon local, a fim de capturá-lo, com ataques também em tempo limitado (de 300 segundos).
A família Yockey capturou dados previamente, utilizou aplicações SAS para analisá-los – Proc Optgraph para implementar o PCV e Viya para mapear tudo – e o time de Alice conseguiu aumentar o número de raids que conseguiria completar no período em 55%, de 22 para 34 ataques. Não só fez uma rota lógica como evitou os lugares que seriam escolhas óbvias para a maioria dos jogadores (por ter vários ginásios Pokémon onde buscar “armas”), porque estes a fariam perder tempo – de igrejas com cultos a parques com eventos.
Essa poderia ser só mais uma história de Pokémon GO, mas virou um paper, que Yockey escreveu com o professor Joe DeMaio e apresentou no SAS Global Forum de 2019. HSM Management assistiu à palestra e a escolheu para iniciar este texto porque ilustra com perfeição a virada de chave cultural no uso de dados prestes a acontecer nas empresas. Em vez de o analytics continuar a cargo apenas dos profissionais especializados, cientistas de dados e programadores, e de ser acionado exclusivamente nas decisões relevantes, ele está sendo “industrializado” – para que possa ser utilizado por todos que decidem alguma coisa e para quaisquer tipos de decisão.
Prevê-se que a industrialização do analytics de dados ocorra no universo empresarial, no Brasil inclusive, nos próximos dois a cinco anos. O movimento vem sendo puxado por diversas companhias provedoras de tecnologia, entre as quais o SAS, empresa global de US$ 3,2 bilhões de receita e 14 mil funcionários que adotou o lema “analytics em todo lugar e para todo mundo”. Hoje companhias que desenvolvem modelos analíticos ainda não são a maioria, e mesmo as que fazem isso levam cerca de seis meses para colocá-lo em ação (65% delas ainda agem nesse ritmo, conforme pesquisas). Já no futuro próximo, o analytics pode se tornar uma ferramenta quase tão comum para tomar decisões quanto é o Waze para definir caminhos. Como disse a HSM Management o fundador e CEO do SAS, Jim Goodnight, “será como se levássemos ‘cientistas de dados’ para trabalhar lado a lado com os gestores”. Seguindo seu raciocínio, tudo que esses profissionais precisarão fazer é recorrer aos “cientistas em forma de software” para descobrir a melhor direção a seguir .
O termo “analytics” diz respeito ao uso de análises estatísticas e modelos preditivos utilizados para superar a concorrência. Pode contribuir para quase todas as áreas de negócios – estratégia, marketing, P&D, gestão de pessoas, supply chain etc. Em geral, quando vem à baila nas empresas, ainda está associado à área de tecnologia da informação (TI) – que, de fato, precisa construir a arquitetura e a governança de analytics e dados. Mas, nesse analytics industrializado, é a liderança sênior que precisará atuar para patrocinar mudanças também nas habilidades de seu pessoal e, sobretudo, na cultura, “assim o analytics passará a ajudar os gestores a administrar”, como diz Randy Guard, VP global de marketing do SAS. O trabalho da área de marketing do SAS, de educar o mercado, tem sido feito majoritariamente por meio de casos de uso que comprovem o que deveria ser óbvio: os dados não são aproveitáveis até aplicarmos analytics a eles.
Quais as chances do Brasil nessa transformação analítica? Como Guard nos conta, o Brasil é considerado um mercado muito importante pelo SAS, e o centro de inovação da empresa inaugurado este ano em São Paulo é a prova disso.
**A VIRADA DAS EMPRESAS**
Este texto se concentra na mudança das pessoas, como a do time de Alice no Pokémon GO, mas sem as empresas vencerem a lei da inércia e vencerem sua parte, isso fica difícil. Os argumentos que podem acelerar a transição das empresas vão do amor ao medo: o amor está em “os dados são o novo petróleo e o analytics, a refinaria”, ao menos enquanto a prática não estiver amplamente disseminada. (Depois, a nova normalidade será todas as empresas fazerem a melhoria contínua de seus produtos e serviços com base no analytics, e quem não o fizer será excluído da competição.) E o medo? Está em “os dados são o novo urânio, algo de imenso valor para gerar energia, mas que pode ser perigoso se você chegar perto e se guardar após o uso”, como costuma dizer o especialista em inovação e transformação digital Silvio Meira. A Lei Geral de Proteção de Dados, prevista para entrar em vigor em agosto de 2020 e ainda rodeada de incertezas, reforça a segunda analogia no Brasil.
O capitalismo perfeito vislumbrado pelo físico Michio Kaku também pode ser um estímulo. “Pense em todos os gadgets que temos; eles nos dão uma noção do verdadeiro valor das coisas. Você não precisa adivinhar qual é a margem de lucro de um produto ou se sua propaganda diz a verdade; há dados sobre isso, acessíveis a concorrentes, clientes, fornecedores… Isso forçará os produtores a se tornarem melhores em fazer produtos e o capitalismo a ser cada vez melhor. Ainda teremos a estupidez humana, claro, mas no que tange oferta e procura, o processo vai se aperfeiçoar”, disse Kaku a HSM Management durante o SAS Global Forum.
Independentemente de uma organização ter ou não profissionais analíticos internos – e o cargo de CDO, executivo-chefe de dados –, ela precisará, segundo o especialista Thomas Davenport, articular uma visão dos benefícios esperados com o analytics, criar uma arquitetura para apoiar esse trabalho na empresa e manter a qualidade dos dados durante todo o ciclo de vida deles – ou seja, manter sua disponibilidade, usabilidade, consistência, integridade (em relação aos requisitos legais e a padrões éticos em geral) e segurança. (É o que tem sido chamado de “governança de dados”.) Ciclo de vida, vale frisar, pressupõe saber eliminar dados.
**Jim goodnight e as gerações**
O fundador do SAS, James Goodnight, é um modelo de profissional analítico. E, nascido em 1943, é um baby boomer. Continua na ativa, mas definiu como seu sucessor o VP executivo Oliver Schabenberger, que nasceu em 1965 e pertence à geração X. E conta, no SAS, com 30% de funcionários millennials, e a geração Z começando a chegar.
Os mercados de especialistas em analytics de dados e de usuários dessas ferramentas comportam muito bem as diversas gerações, na visão de Goodnight, que lidera “by walking around” e verifica pessoalmente isso. As diferentes contribuições se complementam. “Os desenvolvedores de hoje têm a vantagem de escrever os códigos muito rápido; levam ao mercado e já recebem o feedback. No meu tempo, precisávamos passar mais tempo nos certificando de que o programa estava correto antes de apresentá-lo. Mas também acho que alguns dos hábitos de desenvolvimento e cuidados que tínhamos eram maravilhosos e os jovens de hoje, acostumados com o imediatismo, não os têm”, disse a HSM Management.
**A VIRADA DAS PESSOAS**
O leitor talvez já tenha ouvido a história do varejista que, conferindo os dados dos cupons, percebeu que clientes homens que compravam cerveja no fim de semana tendiam a comprar fraldas. Colocou fraldas ao lado das cervejas e as vendas explodiram. Não era lenda urbana, mas era só metade da história. Ocorreu na rede de farmácias Osco Drug, nos EUA, mas os analistas é que levantaram a hipótese e programaram o software para procurar a correlação; não veio do software. Isso significa que a inteligência humana continua importante e que será necessário que as pessoas continuem a fazer hipóteses.
Tudo começa pela compreensão do novo papel humano no mundo da quarta revolução industrial: parte das decisões de negócios que eram humanas será automatizada, mas sob constante supervisão humana; as decisões que continuarem humanas vão se apoiar em dados e tecnologia, como no caso das fraldas; e as equipes de trabalho serão cada vez mais compostas por seres humanos e por máquinas – no que o especialista da MIT Sloan School of Management Thomas W. Malone chamou de “superminds” (ou supermentes). Pode-se dizer, por exemplo, que o time de marketing da construtora Tecnisa caminha para ser uma dessas superminds. Sob o comando de Romeo Busarello, ela pratica o que seu líder chama de “mate-marketing”, mistura de matemática com marketing. Ao entender que as pessoas consultam o site com as ofertas de imóveis principalmente no período da noite, a Tecnisa esticou o horário dos atendentes dos chats no período noturno, até meia-noite, surpreendendo os clientes, que agora obtêm respostas imediatas para suas dúvidas, em vez de esperarem até o dia seguinte.
As superminds vingarão se as pessoas que não são profissionais analíticos se tornarem “movidas por dados” e, para isso, elas devem – individual e coletivamente – incorporar o analytics de dados em suas decisões, com a mesma desenvoltura do time de Alice nos ataques Pokémon.
Conforme Davenport, esses profissionais se dividem em dois grupos: gestores e “entusiastas analíticos”. Segundo ele, os gestores têm de ser defensores ostensivos de uma cultura de decisão baseada em fatos, a ponto de nem ouvirem sobre um projeto que não venha acompanhado de análises de dados. Além disso, precisam estar prontos a agir sobre os resultados obtidos nas análises e serem rápidos em reconhecer e em recompensar quem se sair bem segundo os dados – os indicadores-chave de desempenho (KPIs). Já os entusiastas analíticos devem estar presentes em todas as unidades organizacionais. Profissionais clássicos de TI precisam ter estudado um pouco de analytics de dados para se assegurar de que as aplicações e o banco de dados criem e gerenciem dados no formato correto para a análise. O pessoal de RH deve ter conhecimentos básicos da área para conseguir contratar pessoas com habilidades analíticas. A área jurídica tem de entender as implicações de um processo decisório analítico automatizado, para o caso de algo dar errado no processo etc.
**Reshma Saujani e as mulheres**
A família dela, de ascendência indiana, foi expulsa de Uganda pelo ditador Idi Amin nos anos 1970 e só conseguiu migrar para os Estados Unidos porque pai e mãe eram engenheiros de software e o país precisava desses profissionais. Assim começou a história de Reshma Saujani, advogada formada em Harvard e fundadora da organização não governamental Girls Who Code, que já treinou mais de 185 mil meninas em tecnologia e impactou 100 milhões de pessoas com suas campanhas.
“Acredito muito na mobilidade social pela educação, por isso me candidatei ao Congresso dos EUA. Perdi, mas, quando dei aula de programação para meninas pela primeira vez, vi que elas realmente podem resolver problemas e melhorar nosso mundo. Hoje acho que inspirar uma geração de jovens mulheres fará mais pela mobilidade do que atuar como congressista”, contou Saujani no SAS Global Forum de 2019.
Saujani aposta que os empregos do futuro serão todos tecnológicos, assim como todas as empresas serão de tecnologia. “Todo mundo, não importa o que faça, precisará entender a computação e não ser intimidada por ela. E o problema de nós, mulheres, é que geralmente ainda temos medo disso”, contou, acrescentando que também ela já sentiu medo um dia. “Não é bom para os países usar só metade da população para criar negócios e inovar; todos os cidadãos têm de entrar nessa.” O que ela quer dizer com isso é que todas as mulheres precisam abraçar as disciplinas STEM. E as humanidades?, pergunta HSM Management. Saujani responde com uma citação de Steve Jobs: “O coração da inovação está no encontro da área de humanas com a de tecnologia”.
Dois modelos de profissionais movidos por dados são Reshma Saujani [veja quadro acima] e Jim Goodnight [quadro na página anterior].Um modelo de cultura? O próprio SAS serve como benchmark. As diferenças começam quando sabemos de Jeffrey Pfeffer, de Stanford, que o SAS tem apenas três níveis hierárquicos, com o CEO, Jim Goodnight, possuindo perto de 30 reports.
A reportagem conversou com Goodnight e a VP e CHRO Jenn Mann sobre a formação dessa cultura e descobriu mais características. “Nunca pensamos em ter financiamentos externos ou abrir o capital, porque não queremos ninguém nos dizendo como gerir nossa empresa. Isso dificulta a inovação e o pensamento de longo prazo”, comenta Goodnight. “Quase todos os nossos gestores programam; eles fazem parte da equipe e põem as mãos na massa, não ficam só liderando”, diz Mann. “Nossos funcionários querem ser liderados por quem compreende o que eles fazem.” Mann também diz que estar na Carolina do Norte, e não na Califórnia, não lhe dificulta em nada a captação de profissionais com habilidades analíticas: “Hoje não importa muito onde você está, e sim se você oferece a melhor experiência de emprego; as pessoas podem trabalhar a distância”. Mann acrescenta que cerca de 40% das vagas que surgem são ocupadas por promoções internas e que a avaliação de desempenho é um acordo entre cada funcionário e seu gestor.
E existe diversidade? “Muita”, responde Mann. “Há tempos temos 50% de mulheres, quando a maioria no setor possui até 30%. A flexibilidade dada pela empresa nos viabiliza. Criei meus filhos trabalhando aqui, algo que não conseguiria fazer em meu emprego anterior. Se preciso sair durante o dia para resolver algo, tudo bem, compenso depois”, observa Mann. Uma curiosidade é que há um departamento de arte; a empresa incentiva seu pessoal a se expressar artisticamente. Não à toa, o country manager do SAS no Brasil, Cássio Pantaleoni, é escritor de ficção, canta e toca flauta transversal.