Estratégia e Execução

Quando Davi & Golias andam lado a lado

Entenda as razões estratégicas da AB InBev na parceria com a cervejaria artesanal Wäls; há muita coisa em jogo

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> … você conhece melhor a primeira cervejaria latino-americana a vencer a copa do Mundo das cervejas, a brasileira Wäls, de Belo horizonte. … entende a estratégia da AB InBev de rapidamente adquiri-la, por meio de seu braço mais ousado no Brasil, a Bohemia.

e em um galpão escondido na região da Pampulha, em Belo Horizonte, Minas Gerais, nasceu uma cervejaria. O ano era 1999 e ela começou produzindo apenas um chope pilsen de qualidade padrão, para abastecer uma rede familiar de lanchonetes na cidade. Ninguém poderia prever que a Wäls Cervejas (pronuncia-se “vals”) se tornaria uma estrela do mercado artesanal: desde que os irmãos José Felipe e Tiago Pedras Carneiro assumiram o comando do empreendimento, houve uma guinada nos negócios. Apostando na escola cervejeira belga, a mais tradicional do mundo, a Wäls colocou no mercado cervejas do estilo dubbel, tripel e quadrupel. Foi um acontecimento. em 2014, sua dubbel levou a medalha de ouro na World Beer Cup, nos estados Unidos, um dos prêmios mais prestigiados do planeta, que ocorre a cada dois anos, e sua quadrupel, a de prata. Foi a primeira vez que uma cervejaria da América Latina conquistou o posto mais alto da competição, que, em 2014, foi disputada por 1.403 cervejarias do mundo todo, avaliadas por 219 jurados. Tudo isso não passou despercebido pela Bohemia, o braço mais ousado da gigante AB InBev no Brasil, e, em fevereiro último, o Golias das cervejas comunicou ao mercado sua união com o Davi mineiro. Como afirmam tanto Daniel Wakswaser, diretor da Bohemia, como José Felipe Carneiro, sócio e mestre-cervejeiro da Wäls, ambas as partes têm poder decisório igual na companhia, mas os termos do acordo em si são mantidos em sigilo. 

Sabe-se, contudo, que movimentou o mercado de novo. Desde a aquisição das marcas artesanais Baden Baden, eisenbahn e Devassa pela Schincariol (hoje Brasil Kirin), em 2007, nenhum passo semelhante tinha sido dado. Wakswaser explica a aproximação estrategicamente: “Nós, da AB InBev, estamos muito atentos ao que está acontecendo, vendo que o consumidor cada vez mais procura cervejas de sabores diferentes, para ocasiões especiais”. Nesse contexto, a notoriedade conquistada pela pequena Wäls foi a isca perfeita. “Chamaram nossa atenção os diferentes tipos de cervejas que eles faziam e os inúmeros prêmios que ganharam, por isso resolvemos conversar com eles e entender como enxergam o mercado”. 

A parceria ganha contornos inéditos pelo formato que adotou. Não é uma aquisição, e sim uma sociedade, porque o espírito inovador da Wäls precisa ser mantido. As duas empresas viraram uma por questões principalmente burocráticas; reuniram-se sob um guarda-chuva só todos os ativos e o portfólio da Bohemia (com exceção da pilsen e da lager de massa) e da Wäls, mas, para o público externo, elas continuam a ser independentes. A união ainda se destaca pelo impacto potencial que pode causar às duas parceiras. 

Do lado das microcervejarias, é possível que o impulso ao crescimento seja enorme. elas representam, hoje, somente 0,15% do mercado brasileiro e, medindo pelo segmento premium, que engloba todas as cervejas de maior valor agregado, artesanais ou não, chega-se a algo próximo de 7%. 

É um número muito inferior ao de países como os estados Unidos, em que somente as artesanais representam mais de 10%. Do lado da AB InBev, trazer a Wäls para dentro de seu portfólio foi um passo-chave. A maior companhia cervejeira do mundo, com apetite incontrolável de aquisições nos últimos anos, anda sob ataque das cervejas artesanais norte-americanas – anunciou-se este ano que elas, somadas, produziram cerca de 16 bilhões de barris, empatando com a Budweiser. A empresa capitaneada pelos brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira agora faz um movimento não para aumentar de tamanho, e sim como uma carta de intenções sobre a direção que vai tomar. 

escala e escopo A estratégia da AB InBev é investir em escopo, mas não dá para dizer que a Bohemia seja uma novata em multiplicar variedades. Desde os anos 2000, a Bohemia escura, a Bohemia weiss (de trigo) e a Confraria (de inspiração belga) integram seu portfólio. ela também lançou receitas diferentes em caráter sazonal ou promocional. Foi o caso da Royal Ale (estilo old ale), da Oaken (wood age beer), da Chocolatier (escura, produzida com chocolate) e da Imperial (lager mais encorpada). Só que nenhuma empolgou realmente os conhecedores. 

Mais recentemente, a Bohemia investiu, ainda, na Reserva Barley Wine (cerveja densa, complexa, de um estilo raro no País), que, ao preço sugerido de R$ 120, teve maior receptividade, tanto que em sua esteira vieram três lançamentos: Jabutiba (Indian pale ale com jabuticaba), Bela Rosa (witbier com pimenta-rosa) e Caá-Yari (blonde ale com erva-mate). e, é claro, isso tudo deu impulso à parceria com a empresa mineira. A união com uma das microcervejarias mais inovadoras do Brasil é um passo muito mais incisivo da Bohemia (e da AB InBev) em relação ao ganho de escopo e à construção de um futuro nesse nicho de mercado.

Para a Wäls, as mudanças à vista também são muito claras, tanto em termos de ganho de escala como em condições e fornecedores mais bem estruturados. A cervejaria mineira terá não apenas capilaridade – a distribuição em todo o território nacional é praticamente impossível para uma empresa de seu porte sozinha –, como acesso a insumos (matéria-prima cervejeira), a uma estrutura laboratorial e a uma equipe de primeira linha. 

A celebração do negócio, com inovação, já ofereceu indícios sobre o rumo tomado. Foi lançada em março uma edição limitada de 2 mil litros de Saison d’Alliance, cerveja do estilo saison/farmhouse ale com sálvia, gengibre e hortelã, comercializada em garrafas arrolhadas de 375 ml. “Para mostrar ao consumidor o potencial de criatividade de nossa parceria, escolhemos a saison, que é um estilo curinga no mundo da cerveja, e colocamos sálvia, que nunca tinha sido usada antes”, conta José Felipe, o responsável por algumas das receitas mais curiosas dos últimos anos no Brasil. 

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**PRIORIDADE É INOVAR**

O recado que os sócios da Wäls dão é claro: inovação jamais foi e continuará não sendo apenas uma palavra bonita de marketing. “Nossa missão será criar tendências para que o consumidor conheça cada vez mais variedades e seu paladar vá evoluindo e mudando”, explica José Felipe. Não à toa, a Wäls é uma das únicas quatro cervejarias do mundo a produzir o estilo brut, com método champenoise autêntico, ao lado das consagradas belgas Deus e Malheur e da eisenbahn (com a eisenbahn Lust). 

A ideia de fazer a Wäls Brut nasceu de uma aposta entre os irmãos José Felipe e Tiago do tipo “Você consegue? Duvido”. A complexidade é alta de fato. Nos nove meses que a cerveja leva para atingir a maturidade, suas garrafas têm de ser giradas manualmente duas vezes por dia, e todo o processo é feito dentro da própria cervejaria. essa é apenas uma das muitas histórias que ilustram a sede de experimentação dos mineiros. 

Outra é a da Saison de Caipira, cerveja saison feita com cana-de-açúcar, que eles lançaram em parceria com o mestre-cervejeiro Garrett Oliver, da cervejaria norte-americana Brooklyn, referência mundial. Uma terceira? A Wäls 42 leva amêndoas, limão, abacaxi e café na receita. Se forem colocadas na conta cervejas feitas com cogumelos (Hiratake), abóbora (Abróba), pimenta (Hot Petroleum), chips de cachaça (Quadrupel), baunilha (Vanilla Hoopy Cookie), figo, uvas passas, coentro e cascas de laranja (Bière du Celeiro), o leitor se convencerá do espírito aventureiro dos líderes da Wäls, certo? 

O desafio maior talvez seja cultural: será que a Bohemia incorporará o mesmo espírito aventureiro? ela precisará muito disso, porque o consumidor brasileiro ainda está habituado com cervejas leves, refrescantes, de baixíssimo amargor e baixo teor alcoólico. 

 Tudo longe dos paladares que se intuem nos slogans da Wäls – “Novo Brasil Cervejeiro” e “Cerveja Arte”. Wakswaser, da Bohemia, parece abraçar a ideia dos paladares aventureiros: “O Zé e o Tiago têm liberdade total para desenvolver. Não necessariamente vamos concordar em tudo, mas sem dúvida chegaremos a um acordo”. Wakswaser mostra ter paciência: 

“Sei que nem sempre vamos lançar cervejas de que o público gostará no primeiro momento; o paladar terá de ser direcionado. A gente quer inovar muito, trazer coisas que ninguém fez até agora – o Zé é mestre em inovar mais rápido do que o consumidor médio está acostumado a ver. Leva tempo para que o consumidor compreenda essa complexidade, e paciência é uma das virtudes necessárias aqui”. O risco de que a AB InBev comprometa a experimentação e a excelência da Wäls parece um receio infundado por enquanto. “Sabemos que o crescimento virá com o tempo e nossa ideia é fazer tudo da melhor maneira possível. Queremos fazer coisas boas tanto para o ultraconhecedor de cerveja como para o consumidor médio”, afirma Wakswaser. Uma evidência disso, segundo José Felipe, é que não se pretende aumentar exponencialmente a produção do dia para a noite. “Temos a crença de que a cerveja precisa ser tratada com carinho e cresceremos quando pudermos crescer com qualidade”, diz o mineiro. 

**OS MUNDOS SE CRUZAM**

O mercado cervejeiro brasileiro é altamente concentrado – hoje está nas mãos de quatro fábricas, conforme o volume vendido: Ambev, da AB InBev (68%), Petrópolis (11%), Brasil Kirin (11%) e Heineken (8%). No entanto, quase ironicamente, ele tem alimentado o mercado dos pequenos cervejeiros. José Felipe, por exemplo, estudou em uma faculdade cervejeira bancada pela Ambev, sediada em Vassouras, no Rio de Janeiro. Foi lá, em 2009, que o jovem mestre-cervejeiro pôde desenvolver um pouco mais do estilo que, seis anos depois, levaria ao convite da Bohemia. José Felipe está entusiasmado em encontrar novamente a AB InBev (e suas condições). 

“Existe na Bohemia um departamento de criação de novos sabores e tendências que corresponde ao meu laboratório, só que tem um potencial muito maior, com os melhores equipamentos”, conta ele, que habitualmente cria muitas receitas “malucas” antes de decidir que alguma deve chegar ao mercado. Sim, o mercado artesanal permanece ainda ínfimo no Brasil, mas já não se pode dizer o mesmo da cultura de consumo dessas cervejas. 

O interesse pela produção local, o acesso a produtos nos supermercados, a explosão de bares e empórios especializados em todo o País, o turismo cervejeiro e as inúmeras opções na internet contribuem para uma mudança de mentalidade. A expectativa é: aonde vai a cultura, o mercado vai atrás. “Mais importante que o volume em litros é a quantidade de pessoas apaixona

das por cerveja, bebendo-a em todas as ocasiões. A cerveja especial tem enorme potencial de encantamento e, como o cliente está cada vez mais exigente e informado, não tem como esse negócio não crescer”, crê Wakswaser. 

As operações da nova companhia devem ser mais fortes no Sudeste e no Sul, em um primeiro momento, que são os principais polos cervejeiros do País. O diretor da Bohemia, no entanto, acredita na expansão. A julgar pelos 20 tipos diferentes de cerveja que o mestre da Wäls prometeu já na primeira reunião com os acionistas, os rivais do mercado nacional precisam agir rápido para não serem engolidos pelo salto que a Wäls e a Bohemia darão juntas. 

Os gestores da AB InBev estão animados. Apesar de sua Ambev ter vendido no Brasil, em 2014, 8,7 bilhões de litros de cerveja, atingindo um lucro líquido total de R$ 12,5 bilhões, eles sonham grande com uma empresa que fatura R$ 69 milhões por ano. Se olharmos para o mercado dos eUA [veja quadro na página 79] e para as aquisições feitas lá, entenderemos por que esse Golias quer andar lado a lado com um ou mais Davis.

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