Estratégia e Execução

SÃO MARTINHO: DNA inovador contra as adversidades

O Grupo São Martinho lucra com a produção de açúcar e álcool, segmentos que amargaram, nos últimos anos, dificuldades financeiras e de regulação governamental

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Um azul incomum às companhias do setor sucroalcooleiro. Essa é a cor que o balanço financeiro da São Martinho apresenta – mesmo com seu desempenho sendo afetado pelas difíceis circunstâncias mercadológicas recentes e pelas injunções do governo federal para conter o preço dos combustíveis e seu efeito na inflação. 

Da safra 2007-2008, quando começou a publicar seus resultados, à de 2015-2016, a receita líquida do grupo cresceu quase quatro vezes, indo de R$ 712,4 milhões para R$ 2,8 bilhões. Nesse período, seu valor de mercado passou de R$ 1 bilhão para R$ 7 bilhões. E, se nos dois primeiros exercícios a empresa apresentou prejuízo, depois só registrou lucro. 

Fábio Venturelli, presidente do grupo, atribui os bons resultados especialmente à capacidade do corpo funcional de superar adversidades com boa dose de criatividade. “A São Martinho tem no elemento humano um DNA inovador.” Segundo o executivo, várias tecnologias aplicadas no setor sucroalcooleiro foram desenvolvidas pela empresa. 

**INOVAÇÃO COM “WAZE DA CANA”**

“Nossas colhedoras conseguem processar uma média diária de cana substancialmente maior que a média da indústria brasileira, da ordem de 900 toneladas por dia por máquina, enquanto o restante do setor deve estar perto de 600”, ilustra Venturelli. 

O nível médio de mecanização de colheita nos 300 mil hectares de área cultivada do grupo também impressiona: é de 97%. Em breve, quando chegar ao fim o ciclo dos 3% de áreas de declive que ainda têm corte manual, estas serão substituídas por terrenos que permitem a mecanização, e o índice completará 100%. 

A São Martinho desenvolveu, ainda, as primeiras máquinas usadas nesse processo e a tecnologia de como plantar para favorecer o tráfego das colhedoras nas fazendas. No entanto, depois vendeu esse negócio para a Case, empresa do Grupo Fiat especializada nesse tipo de equipamento – só que ela continua fazendo melhorias em parceria com a Case. “Mais do que um cliente, a São  Martinho é parte do processo de desenvolvimento tecnológico das máquinas”, confirma Cesar Di Luca, diretor-comercial da Case IH para o Brasil. 

Os laboratórios de pesquisa e desenvolvimento da São Martinho também pesquisam formas de criar sementes de cana. Para plantar os canaviais, é preciso cortar um bom pedaço do pé maduro, colocá-lo em uma vala e esperar dar brotos. A empresa acelerou isso, desenvolvendo mudas pré-brotadas, que geram expressiva redução da quantidade de cana madura necessária para plantar ou refazer o canavial. 

Em média, a cana demora 18 meses para poder ser colhida e costuma dar cinco safras consecutivas antes de o canavial ter de ser replantado. Com tecnologias como a das mudas pré- -brotadas, há fazendas na São Martinho que já conseguiram 15 cortes consecutivos. Isso é fundamental, porque o grande custo da indústria é quando se precisa replantar a cana, como explica Venturelli. “Se meu concorrente tem de replantar a cada cinco anos, e eu, a cada 15, ele tem três vezes meu custo.” 

De acordo com o executivo, a São Martinho caminha para a automação completa de cada etapa de seus processos agrícolas. Sistemas de rastreamento permitem saber onde está cada colhedora e o momento exato de enviar um caminhão para carregar a cana cortada, além de quanto tempo o veículo demorará na lavoura para embarcar e chegar até a usina. 

Desse modo, controlam- -se com mais precisão os estoques e os custos relacionados. O sistema é capaz, ainda, de identificar potenciais falhas no motor desses equipamentos e atuar antes que o problema aconteça, redirecionando veículos e máquinas para evitar perdas. “É como ter um Waze da cana”, compara Venturelli, referindo-se ao popular aplicativo de trânsito e navegação. 

O gerenciamento em tempo real inclui os quadriciclos desenvolvidos pela São Martinho para aplicar produtos químicos de controle de formigas e ervas daninhas nas lavouras. São dotados de sensores que identificam o mato e os insetos, a fim de injetar a dose adequada, e fazem a tarefa antes exercida por 15 pessoas de maneira extenuante. 

O quadriciclo foi concebido para transitar com facilidade entre os canaviais e transmitir os dados de onde foi aplicado o defensivo, em qual formigueiro e a quantidade de substância química usada, facilitando o cálculo do custo da aplicação e evitando o emprego de doses de agrotóxicos desnecessárias. 

O aperfeiçoamento da transmissão de dados dos equipamentos para as instalações da empresa nas quais são gerenciadas as informações é um desafio de inovação que está sendo enfrentado agora. As redes de comunicação móvel de quarta geração (4G) à disposição no mercado apresentam cobertura precária ou mesmo inexistente em áreas rurais. 

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Fábio Venturelli, que assumiu o cargo de CEO do Grupo São Martinho em 2007

A empresa primeiro tentou fortalecer a rede usando seus veículos como repetidores do sinal 4G, mas depois optou por outra solução. “Iniciamos um projeto com o CPqD [Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações] para construir uma rede 4G particular e personalizada para transmissão de dados”, conta Walter Maccheroni Jr., gestor de inovação da São Martinho. 

“Quando pronta, essa rede personalizada viabilizará células com raio de cobertura de dezenas de quilômetros, provendo mobilidade, qualidade de serviço e taxas elevadas de transmissão, por meio de arquitetura composta de estação rádio-base e terminais veiculares adaptados aos requisitos operacionais das usinas de cana”, explica Fabrício Lira Figueiredo, gerente de tecnologias de comunicação sem fio do CPqD. 

O sistema já foi validado tecnologicamente e deve entrar em operação definitiva até o fim da safra 2016-2017. A São Martinho será a primeira a adotar essa tecnologia, porém, depois da consolidação em suas unidades, o CPqD terá direito de comercializar a solução para outras companhias – uma parceria ganha-ganha. 

“Queremos beneficiar todo o setor sucroenergético, bem como outros segmentos do agronegócio que demandem uma solução integrada de rede banda larga móvel e sensoriamento para automação da rastreabilidade da cana”, afirma o executivo do CPqD. 

**RESPOSTAS RÁPIDAS**

Além da inovação nos processos agrícolas, Venturelli acrescenta outro fator de diferenciação competitiva da São Martinho: a habilidade de trabalhar com cenários mutantes e buscar oportunidades nas adversidades. Segundo ele, isso é fruto sobretudo do engajamento dos funcionários. 

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**ANÁLISE**

**Uma empresa que interpreta bem os movimentos do mercado**

A previsão da safra de cana-de-açúcar 2016-2017 é de 691 milhões de toneladas, um recorde e sinal de recuperação do setor, cujas empresas foram apanhadas no contrapé, com a crise global de 2008 e as drásticas mudanças de orientação regulatória no Brasil. “O governo alterou as regras do jogo no meio do caminho”, afirma Cláudio Antônio Pinheiro Machado Filho, coordenador do Pensa, núcleo de estudos e pesquisas do agronegócio da Fundação Instituto de Administração (FIA). 

Segundo ele, os incentivos dados ao setor para avançar em uma agenda de investimentos no etanol como uma commodity global desapareceram. Após o pré-sal, isso foi substituído pela política de manutenção artificial dos preços da gasolina no mercado interno e o setor se desestruturou. Investimentos em ativos feitos no período de euforia, a preços sobrevalorizados, geraram um grande passivo, combinado com elevação de custos e baixa geração de caixa, levando ao fechamento ou à recuperação judicial de mais de 80 usinas até 2015. 

Mesmo com essas adversidades, algumas empresas de açúcar e álcool, como o Grupo São Martinho, têm apresentado resultados positivos. Para o coordenador do Pensa, essas companhias atravessaram bem as turbulências por não embarcarem em investimentos tão alavancados no período crítico e por adotarem políticas de gestão que privilegiaram alta eficiência operacional, com base em avanços tecnológicos nos campos agrícola e industrial e na logística de distribuição. “Se existiu algum efeito positivo da crise, foi a conscientização imperativa da busca de eficiência plena em todas as etapas do processo produtivo.” 

Para o economista e consultor Miguel Arab, a São Martinho pode ser considerada uma referência de boa gestão no setor em que atua. Ele destaca o fato de a companhia sair de um prejuízo de R$ 48,8 milhões no ano-safra 2007-2008 para um lucro líquido de R$ 194,3 milhões no exercício 2015-2016. “Trata-se de um resultado excepcional, pois, nesse período, a economia brasileira apresentou crescimento claudicante, chegando até mesmo a taxas negativas em 2015 e 2016.” 

Arab cita outro dado que classifica como significativamente relevante no balanço da São Martinho: o Ebitda, um indicador contábil para medir a capacidade de geração de caixa da empresa com suas atividades operacionais, sem contar impostos e outros efeitos financeiros. No ano-safra 2015-2016, foi de R$ 1,3 bilhão, o equivalente a 46% da receita líquida da São Martinho. “Pouquíssimas empresas conseguem ter essa margem”, diz o economista. “A São Martinho vem mantendo esse bom desempenho operacional desde 2008, o que mostra que sua administração está compreendendo bem os movimentos do mercado e os de gestão.” 

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detalhe de uma colhedora em ação, exemplo de como é feita a colheita mecanizada e pés de cana

A cana é um organismo vivo, dependente de terra, água e sol, e as condições climáticas alteram sua produtividade. Se chove muito, cai o conteúdo de açúcar da cana. Se falta chuva, a planta não cresce. É preciso lidar com essa imprevisibilidade de cenários dia após dia e tentar aproveitar o lado positivo de cada situação. 

Em uma geada, por exemplo, em um primeiro momento, ocorre a aceleração da maturação da cana. “Se formos ágeis nessa colheita, podemos até nos beneficiar, aproveitando as consequências da defesa natural da planta”, exemplifica Venturelli. “Exercitamos nossa capacidade de respostas rápidas a situações como essa diariamente. É quase obsessão.” 

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Usina Iracema, em Iracemápolis (SP), onde a história da empresa começou

**ANO DE MUDANÇAS**

A capacidade de adaptação do grupo foi testada ao extremo entre 2007 e 2008, quando a companhia controlada pela família Ometto abriu seu capital e contratou Fábio Venturelli como seu primeiro CEO profissional. 

O mundo vivia uma euforia verde. Numerosos países criaram legislações que determinavam o aumento gradual do uso de etanol em sua matriz energética por suas vantagens ecológicas, pois é uma fonte renovável e menos poluente. 

As grandes consultorias correram o mundo para contabilizar o que isso poderia significar em termos de demanda e chegaram a uma conta de 150 bilhões de litros anuais em 2015, mais que o dobro do consumo mundial na época. 

Por deter tecnologia para a produção de etanol, possuir áreas agricultáveis férteis e clima favorável à cana-de- -açúcar (da qual se extrai o etanol), o Brasil passou a figurar na agenda de quem decidia entrar nesse mercado, um extenso rol que incluía desde megainvestidores do porte de George Soros e empresas de tecnologia como o Google até celebridades como a cantora Madonna. 

Os grupos tradicionais do ramo já presentes no País também se contaminaram com a euforia, incluindo a São Martinho. A companhia tinha duas unidades que produziam etanol e iniciara a construção de uma terceira em 2005, pouco antes desse boom. 

Tamanha voracidade para começar a produzir (dos novos investidores) e ampliar a capacidade instalada (dos grupos já estabelecidos) teve efeito imediato no preço dos equipamentos para a construção de usinas e no valor da mão de obra. Mas a expectativa de que o mundo consumiria 150 bilhões de litros de etanol até 2015 indicava que valia a pena absorver essa inflação de custos. Afinal, o Brasil se tornaria “a Arábia Saudita do etanol”, como vários veículos da imprensa internacional cunharam o País. 

Só que, além de se endividar significativamente para construir novas usinas, a maior parte dos novos players (e alguns dos tradicionais) menosprezou a importância da garantia de suprimento de cana, principal insumo tanto do álcool como do açúcar. Os projetos ficavam prontos, mas não havia cana para todos. Então, os novatos perceberam que a conta para formar canaviais era duas vezes e meia maior que aquela para instalar as usinas. 

A São Martinho não teve esse problema: ela produz sua matéria-prima em canaviais próprios, o que lhe dá segurança de suprimento. Mas Venturelli conta que ele e sua equipe se adaptaram ao novo cenário trabalhando na elaboração do novo plano estratégico da companhia. 

Foram contra a corrente: deduziram que os esforços da empresa tinham de ser canalizados para a produção de açúcar, uma commodity que cresce no mesmo ritmo da expansão da população mundial. “É a fonte de caloria mais básica e barata”, define Venturelli. “Sempre vai haver mercado para o açúcar.” 

Quanto ao mercado de etanol, decidiram que seria necessário ter um parceiro estratégico para disputá-lo. “Há muitos produtores e poucos compradores para distribuir esse combustível; precisávamos nos associar a um distribuidor.” Em paralelo, a São Martinho deixou de integrar a Copersucar, uma das principais cooperativas sucroalcooleiras do País, da qual foi uma das fundadoras, por ter aberto o capital. 

“Foi um ano inesquecível para mim”, lembra Venturelli. “Vim do setor químico [ele fez quase toda a sua carreira na norte-americana Dow Chemical], entrei em uma empresa que acabara de abrir o capital e que tinha sua área de vendas e logística delegada à Copersucar e, em questão de meses, tudo mudou radicalmente. Tive de pegar minha malinha de vendedor do tempo da indústria química, sair atrás de clientes e descobrir quem comprava álcool e quem comprava açúcar.” 

**LOGÍSTICA E ENERGIA LIMPA**

Além de concentrar-se na produção de açúcar e buscar uma aliança para produzir etanol, a São Martinho incluiu em sua estratégia a montagem de uma plataforma logística para escoar as duas commodities. Hoje, nas contas de Venturelli, o grupo é um dos que mais transportam açúcar nas ferrovias para os portos. 

Também entrou na lista de novas estratégias o aproveitamento do bagaço da cana depois de processada para a queima em caldeiras, a fim de gerar energia elétrica limpa para consumo próprio e para ofertar a terceiros. Hoje, o grupo gera 1 gigawatt de energia. Foi uma forma economicamente viável de aproveitar o resíduo dos 25 milhões de toneladas de cana moídos por suas unidades. 

**À PROVA DA CRISE**

O rigor no controle de custos empregado na época em que a São Martinho estava vinculada à Copersucar foi mantido nessa nova fase, o que contribuiu para a empresa enfrentar bem as consequências da crise financeira mundial deflagrada nos Estados Unidos em decorrência de empréstimos imobiliários malfeitos (que ficaram conhecidos como subprime), cujo ápice se deu entre 2008 e 2009. 

Como a São Martinho estava expandindo suas usinas de duas para três, seu custo de captação não foi tão abalado quanto para o restante do setor. Os novos entrantes foram apanhados no contrapé, pois seus projetos ainda estavam no começo. 

Em 2010, a aliança almejada na área de etanol se materializou em uma sociedade com a Petrobras Biocombustível, na proporção de 51% para a São Martinho e 49% para a estatal. Batizada de Nova Fronteira Bioenergia, incorporou a destilaria Boa Vista, que estava sendo erguida em Quirinópolis (GO), deu mais fôlego financeiro à São Martinho e trouxe um parceiro com especialização na produção e distribuição de combustíveis. 

Na época, a Boa Vista moía 1 milhão de toneladas de cana por ano; hoje, são 4,7 milhões. Recentemente, no entanto, o presidente da Petrobras, Pedro Parente, afirmou que a companhia precisaria desfazer-se de vários ativos para reduzir seu alto endividamento, entre os quais os pertencentes à subsidiária Petrobras Biocombustível, sócia da São Martinho nesse empreendimento. 

Assim, em meados de dezembro, as duas empresas fecharam um acordo pelo qual a São Martinho fica com a parte da Petrobras na Nova Fronteira Bioenergia. O pagamento à estatal será feito em ações da São Martinho, o equivalente a US$ 133 milhões, com base no valor dos papéis na época. 

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Colhedora produzida pela Case, desenvolvida em conjunto com a São Martinho – uma das muitas inovações da empresa

**O FUTURO**

A enxurrada de projetos de usinas fez com que o Brasil dobrasse para 600 milhões de toneladas por ano sua capacidade de processamento de cana, mas boa parte é redirecionada hoje para a produção de açúcar. 

A previsão feita pelas consultorias entre 2007 e 2008 de que o mercado mundial consumiria 150 bilhões de litros de etanol em 2015 não se cumpriu – o volume chegou a apenas 87 bilhões de litros. 

Na época dos prognósticos, imaginava-se que o mundo ficaria mais ecológico. Ocorre que, com a crise mundial que se estendeu até 2009, a paixão pelo ecologicamente correto sumiu das agendas, porque minguaram todas as fontes de recursos. Os países propensos a aderir ao etanol concentraram sua atenção em outras prioridades. 

Na opinião de Venturelli, o etanol ainda é a fonte de energia mais competitiva e saudável do planeta. “Mas ninguém quer se amarrar em outra Arábia Saudita.” Isso, porém, não tira seu sono. O engajamento de seus funcionários, que evoluíram profissional e financeiramente com a empresa, o forte foco no custo e a capacidade de inovar e de responder rapidamente lhe dão segurança sobre o futuro. “Mantemos o constante aprimoramento e a ruptura de paradigmas, do topo da direção ao chamado chão de fábrica.”

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