Dossiê HSM

Trabalhar em empresa é…

A sensação de caos precisa se reeducar com urgência, e com a ajuda do empregador
Sandra Regina da Silva é colaboradora de HSM Management.

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Você já parou para se perguntar sobre como o mundo estaria hoje se não tivesse surgido o novo coronavírus em Wuhan? É algo impossível de saber, mas, se os responsáveis por responder a essa pergunta fossem o sul-coreano Byung-Chul Han, professor de filosofia e estudos culturais da Universität der Künste Berlin, e/ou o ítalo-suíço Giuliano da Empoli, fundador do think tank Volta, de Milão, é possível imaginar as respostas: as coisas estariam muito semelhantes, sobretudo na vida profissional.

Em 2010, Han escreveu A Sociedade do Cansaço, que descreve as pessoas atuais como sujeitos de desempenho, que buscam maximizar produção e ser empresários de si mesmos, com positividade compulsória, e aponta a exaustão como uma forma de existir. Empoli lançou Os Engenheiros do Caos em 2019, no qual comenta como a tecnologia nos modificou de duas maneiras: nos acostumando a ser atendidos imediatamente – o que significa intolerância com lentidão e ineficiências, menor capacidade de atenção e necessidade de estímulos constantes – e nos fazendo buscar cada vez mais a popularidade nas redes sociais.

Independentemente de concordarmos com esses dois pensadores – desempenho, protagonismo e tecnologia não são intrinsecamente ruins –, há evidências de que esses fatores estão, sim, gerando ou amplificando a sensação de caos. E, embora não seja o único, o trabalho é, de fato, o fórum por excelência onde isso aparece, já que os conceitos de desempenho, protagonismo e tecnologia povoam esse espaço.

Em outras palavras, o problema já existia antes da pandemia, mas o nível de consciência em relação a ele era menor – e o que o cérebro não vê, o coração não sente, parafraseando o ditado popular. A consciência começou a vir à tona com a covid-19. Individualmente, na mudança de rotina de cada um em sua casa. Coletivamente, em movimentos como o “Great Resignation”, como são chamadas as ondas de pessoas pedindo demissão de seus empregos em vários países, mês após mês – EUA, Canadá, Singapura, Austrália etc. Só nos EUA, e só em agosto de 2021, 4,3 milhões de pessoas se demitiram.

As explicações dos pensadores citados e dos representantes do mundo executivo são um pouco diferentes, mas convergem. “Estamos vivendo um momento sem precedentes, em que todos precisam aprender a lidar com uma série de novos cenários e mudanças”, diz Milton Beck, diretor-geral do LinkedIn para América Latina. “O smartphone materializou isso para cada pessoa, porque todos nós começamos a carregar toda a vida pessoal e profissional num único aparelho”, afirma Daniela Diniz, diretora de conteúdo e relações institucionais do Great Place to Work (GPTW).

A pandemia acabou agravando o caos, é claro, e por duas razões principais, como comenta Marcelo Nóbrega, ex-executivo de recursos humanos e investidor de startups de RH. “Primeiro, a mudança do contexto foi muito mais rápida do que nossa capacidade de adaptação; segundo, logo se percebeu que ir para casa era obrigação, não escolha.” Ter, desde o início da pandemia, excesso de informações e fake news tampouco ajudou, de acordo com Nóbrega.

A sobrecarga tecnológica e a vulnerabilidade da liderança também agravaram o quadro. “Ter de entender as funcionalidades do Zoom e do Teams de uma hora para outra, sem um tempo para aprender, gerou estresse instantâneo”, opina Diniz. “Quando os funcionários enxergaram suas lideranças perdidas dentro desse caos, sua sensação de desamparo aumentou ainda mais”, acrescenta Paulo Sardinha, presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH).

Em suma, não importa que employee experience e saúde mental sejam assuntos caros a nossas empresas. A sensação de estar mergulhado no caos que você e eu estamos sentindo nos tempos atuais é plenamente justificada, tanto por thinkers como por practioners, mesmo que você tenha privilégios de classe média e alta e que não tenha perdido ninguém para a covid-19.

Há algo que pode ser feito em relação a esse desconforto – para usar um eufemismo –, seja pelos próprios profissionais, pelos líderes ou pelas organizações? Afinal, incertezas, instabilidades e complexidades constituem um fenômeno maior, como mencionou Beck, do LinkedIn.

HSM Management foi ouvir especialistas a esse respeito e conseguiu levantar, on e off-the-record, cinco pressões específicas do trabalho atual que, se puderem ser aliviadas, surtirão um efeito benéfico significativo – elas são abordadas ao longo deste Dossiê.

Neste texto, apontamos questões gerais que, segundo nossos entrevistados, pioram o caos interior e devem ser evitadas. Também listamos iniciativas genéricas que são recomendadas para colocar alguma ordem na entropia. Fazemos isso, é importante dizer, sem desandar para a positividade tóxica de hashtags como #goodvibesonly. Palavra de honra.

## O que piora a situação
A indefinição das empresas sobre como será o modelo de trabalho pós-pandemia tem exercido grande pressão sobre os funcionários. Poucas já bateram realmente o martelo. Segundo pesquisa do GPTW, apenas 30,2% das companhias brasileiras adotaram uma nova política para o pós-pandemia. O temor de alguns é que a demora acabe levando a um retorno ao presencial.
“Todos estão esperando que a força de trabalho híbrida se torne a norma”, afirma Jill Cotton, especialista em carreiras do Glassdoor global. Pesquisa que divulgamos nesta edição confirma que a maioria dos funcionários brasileiros quer trabalho híbrido ou remoto, e estão ficando tensos com a possibilidade de não ser assim.

De outro lado, definir que o modelo será híbrido não acaba com a ansiedade. Como observa Nóbrega, o modelo “é confuso, porque não tem rotina. Segunda estou em casa; terça, no escritório; quarta, num coworking… e na semana seguinte é diferente. Não é legal isso; gostamos de rotina”. E se algumas empresas ainda não definiram como será o modelo de trabalho, a espera é uma tortura.
A causa da tensão pode ser sutil. Por exemplo, ouvir o funcionário é uma demonstração de respeito da empresa – “é uma gestão mais humanizada e personalizada”, como diz Daniela Diniz. Todo mundo concorda. Só que, “em alguns casos, estão dando opções demais aos colaboradores”, comenta Nóbrega. Pessoas introvertidas podem ficar incomodadas, como aponta o livro O Paradoxo da Escolha, de Barry Schartz.

Bem mais explícita é a tirania da produtividade, avisa Diniz. “Um estudo de Stanford mostrou que as pessoas estavam mais produtivas porque iam menos ao médico, conversavam menos etc.” Segundo ela, não podemos elogiar o excesso de trabalho sem pausa, sem respiro. Fora isso, quem não ficou mais produtivo começou a se achar um problema e perder a autoestima.

## As soluções possíveis
Como a ordem é sobreviver ao caos e temos de aguardar as definições de modelo de trabalho, Diniz sugere que cada um invista em autoconhecimento. O simples fato de entender o próprio relógio biológico, com os horários em que se sente mais produtivo, permite manejar a agenda a favor de si mesmo.

O reconhecimento pela empresa, e pelas lideranças, de dores e traumas da covid-19 é outro passo importante. “Vai ter gente com medo de sair de casa e até quem vai continuar usando máscara para o resto da vida. Eu, por exemplo, não pretendo mais entrar num carro de aplicativo”, revela Nóbrega.

Sardinha, da ABRH, também ressalta a necessidade de paciência para lidar com essas incertezas. “O indivíduo está se regenerando em suas forças para viver de maneira menos planejada, menos segura.”

Outra medida importante é criar novas rotinas e disciplina, algo em que as empresas podem ajudar muito. Afinal, apesar de várias pessoas acreditarem que já conseguem gerenciar seu tempo atuando em home office, isso ainda está longe do ideal, diz a diretora do GPTW. “Vemos que as melhores empresas para trabalhar impõem essa disciplina: eliminam reuniões nas sextas-feiras; bloqueiam o e-mail dos funcionários para o almoço; divulgam cartilhas com práticas a ser seguidas, como a de dar uma pausa entre uma reunião e outra. Elas criam novas regras. É uma tentativa de pôr ordem no caos.” Iniciativas assim minimizam mal-estar nos funcionários, por não saberem se estão indo além ou aquém da expectativa da empresa. “A falta de limites tem se mostrado uma angústia coletiva, em que não se sabe exatamente qual é o bom tom”, comenta Diniz.

O caos não acabará tão cedo, acredita o presidente da ABRH, embora um princípio de estabilização seja esperado para 2022. Primeiro, é preciso se consolidar o novo modelo de trabalho. “O indivíduo precisa saber a que tem que se readaptar”, explica Sardinha.

Depois, provavelmente ressurgirão questões malresolvidas nas relações entre empregadores e empregados, que podem “apimentá-las”. Mas Sardinha é otimista. Ele enxerga mais resiliência nas pessoas – uns diriam “antifragilidade”. A construção de tolerância ao caos é a próxima fronteira.

Use as tecnologias a seu favor

Estabelecer espaços de fala e combinados sobre onde, como e quando são essenciais para ajudar a reduzir a sensação de estar perdido

A profusão de tecnologias tem feito com que a comunicação no trabalho ganhe escala e amplitude nunca antes vistas. E isso cansa. O trabalho passa a incluir uma nova dimensão, a de gerenciar demandas, cobranças, entregas e, principalmente, relações em multiplataformas. É um contexto de pressão que prejudica o desempenho e afeta a saúde mental.
Como em tudo relativo à transformação digital, vencer esse desafio depende menos das ferramentas e mais de cultura e mindset. Não há regra, cada contexto cria seu caminho – mas os líderes devem ser guardiões dos acordos. Proponho três reflexões como ponto de partida:

1. Poucas transformações são possíveis enquanto poucos mandam e muitos obedecem porque têm juízo. Mudanças de verdade acontecem em ambientes não autoritários, onde há espaço para diálogo, inclusive entre pontos de vista discordantes.
2. Crie espaços claros para a comunicação. Exemplos são grupos de mensagens exclusivos para envio de referências de mercado, notícias e tendências, reuniões para troca de ideias sem julgamento, apresentações para compartilhamento de resultados (positivos e negativos), 1:1 para ideação de soluções etc.
3. Delimite essa comunicação. Limite vale para gestores e funcionários. Estabeleça acordos sobre os horários para trocas de mensagem e defina os canais mais adequados para cada tipo de mensagem – demandas, cobranças, ideias e reclamações. Não é porque os canais existem que devem ser usados indisciplinadamente.

Sempre pode piorar

Como evitar o caos ampliado do M&A

O caos em que muitos se encontram torna-se ainda mais complexo para funcionários de empresas que passam por fusões ou aquisições (M&A, na sigla em inglês). Especialmente quando são startups sendo adquiridas por empresas tradicionais, o que vem acontecendo com frequência no Brasil.

“No nível de gestão, a tensão com a possibilidade de demissões é especialmente alta. Se é aquisição, obviamente a tensão é mais forte do lado da empresa que está sendo comprada”, diz Leylah Macluf, diretora de talento e transformação Américas da NTT Data (ex-Everis).

A adaptação cultural costuma impactar mais empresas que têm origem distintas – como uma multinacional holandesa e outra espanhola, ou maturidades diferentes, como as startups e as estabelecidas. Frequentemente muda o jeito de fazer as coisas, de encarar inovação, risco e erro, e a pressa de aprender amplifica o estresse. Rituais arraigados que são desmontados estão entre as principais dores que um processo de M&A causa aos colaboradores.

Informações que ajudam

O desenvolvimento de um M&A é mais ou menos previsível. Durante seis meses a um ano, os funcionários saem do equilíbrio que tinham antes, vão para o caos e, depois, começam a se estabilizar de novo. Isso facilita o compartilhamento de informações.

Para amenizar o sofrimento dos colaboradores, o primeiro cuidado é a comunicação clara, objetiva, coerente, no timing certo. “Ter porta-vozes treinados é importante. Chamamos isso de rede de agentes de mudança”, diz Macluf. Três fases mais delicadas do processo exigem carga dobrada de comunicação: o “day one”, em que é anunciada a compra; quando os funcionários das duas empresas, sem se conhecer, passam a trabalhar na mesma estrutura física; e o anúncio das reestruturações.

Os funcionários se sentem mais acolhidos se for criada uma nova cultura com elementos das anteriores, em vez de uma prevalecer sobre a outra. (S.R.S)

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