Dossiê HSM
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Estamos preparando os profissionais que desejamos?

Da formação escolar às entrevistas de candidatos em empresas, a educação e, consequentemente, o mercado de trabalho têm dado sinais claros de que muita coisa precisa mudar. Conheça novas práticas e modelos que podem reverter essa sina

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O psicólogo suíço Jean Piaget afirmou, em 1977, que “o ideal da educação é aprender a aprender”. Faz todo sentido hoje: só mesmo com gana pelo aprendizado constante uma pessoa continua preparada para o mercado de trabalho. Infelizmente, isso está distante da realidade brasileira, em que, segundo especialistas, é mais comum “aprender apenas para garantir o diploma”. Além disso, gestores e recrutadores tendem a priorizar a instituição em que o candidato se formou. Mas será que isso ainda faz sentido?

“A graduação em escola de primeira linha sempre vai ser critério de escolha, principalmente para a ocupação de cargos na área técnica”, diz Luiz Valente, CEO da Talenses, empresa de recrutamento e seleção. Por outro lado, ele lembra que profissionais formados nas melhores universidades costumam ser mais assediados pelo mercado, o que vira um desafio de retenção – algo com o qual nem toda empresa quer lidar. Habilidades comportamentais como comunicação, flexibilidade e socialização estão em alta. Aqui, o nome da instituição impresso no diploma importa menos.

Até 2025, segundo o Fórum Econômico Mundial, a automação acabará com 85 milhões de postos de trabalho. Em compensação, surgirão 97 milhões de novas posições. “O saldo é positivo, mas vai esbarrar no problema da qualificação”, reforça Valente. Como conciliar a oferta com a demanda? “A automação e a exclusão de postos avançam muito mais rápido do que a formação de mão de obra. Isso no mundo inteiro, só que no Brasil é mais preocupante.” A saída é o investimento em qualificação e requalificação. “A responsabilidade é de todos os agentes: governo, setor privado, terceiro setor. O desafio é grande, mas vejo uma onda muito crescente”, acredita.

Nessa corrida por mais profissionais preparados, grandes empresas têm entrado no mercado de educação. Se não encontram os candidatos que desejam, elas mesmas estão preparando-os. Entre essas iniciativas, figuram o Instituto de Tecnologia e Liderança (Inteli), do BTG Pactual, Santander Coders, Samsung Ocean e XP Educação. São modelos que se dizem baseados em conteúdo na prática, relevantes diante de um modelo educacional ultrapassado em muitas instituições, na opinião de Valente.

Ele nota que, na hora da seleção, em casos de dúvidas sobre quem contratar, os critérios de desempate estão mudando. Já são muitos os gestores que enveredam pelo candidato de grupos minorizados – isso pode pesar até mais do que a formação em escola de primeira linha. “As empresas devem estar atentas a isso. A geração Z, por exemplo, leva a sério temas como propósito, diversidade e inclusão no trabalho”, diz.

Fabio Gabbay, CEO da Recrutaê, consultoria de recrutamento para empresas de tecnologia, percebe que o maior peso está na experiência, na carreira do candidato. Para ele, o fator diversidade vem depois, seguido da formação. Isso ocorre porque escolas de primeira linha formam muitos profissionais que até podem ter melhores conhecimentos técnicos, mas nem sempre têm habilidades comportamentais que se encaixam na cultura organizacional. Dar chances para quem não pôde pagar uma faculdade cara nem conseguiu entrar numa universidade pública de renome pode ser a solução para formar equipes diversas e inclusivas, tornando a empresa mais bem-sucedida na atração e na retenção de talentos.

## Flexibilização
É por isso que especialistas recomendam que as empresas flexibilizem seus pré-requisitos para encontrar talentos. Gabbay afirma que as companhias podem encontrar pessoas focadas e dispostas em outros lugares além daqueles a que elas sempre recorrem. “Elas precisam se abrir para outras frentes, porque há muitas pessoas fora do mainstream”, explica.

Karla Silva, gerente de RH da Gateware, empresa de inovação e tecnologia, concorda: “Ao se avaliar currículo como antigamente, perdem-se profissionais”. A Gateware, que saltou de 70 funcionários em 2021 para 170 atualmente, tem contratado até mesmo pessoas sem experiência, dependendo da função. “Conferimos os blogs que ela acompanha, os cursos que fez e faz, se a pessoa se mostra bem-disposta. Assim identificamos o perfil potencial dela”, explica Silva. Nas entrevistas, as perguntas são mais voltadas para a pessoa em si do que para as funções técnicas.

Uma vez contratado, o profissional tem acesso a uma série de conteúdos de cursos em vídeo, avaliações, programas de gamificação. No momento, a empresa está implantando a plataforma Universidade Gateware, que servirá para captar interesses individuais e dar novas oportunidades aos funcionários. “Talvez haja até um investimento posterior nos colaboradores em destaque, oferecendo uma faculdade ou uma pós, olhando assim para o futuro”, diz a gerente.

Toda a gestão de processo é feita com uma ferramenta de inteligência artificial da Selecty, empresa de recrutamento e seleção digital. “A IA mapeia o perfil comportamental de cada candidato e o mantém num banco de dados. Quando abre uma nova vaga, ela traz todos aqueles que dão ‘match’”, explica Silva. Essa ferramenta também apresenta indicadores para a alta gestão da empresa, como funis e dificuldades que ela pode enfrentar.

A Recrutaê também usa IA, além de aprendizado de máquina, para analisar e peneirar candidatos em uma interface 100% digital. “Para a empresa cliente, fica a parte nobre, que é a análise comportamental das pessoas”, diz Gabbay.

## Como mudar a educação
Pouco adianta atualizar as formas de seleção se a educação – básica e superior – ficar na mesma. Uma alternativa é copiar modelos de quem tem inovado no assunto. Lucas Rocha, diretor de projetos na Fundação Lemann, cita a Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa, movimento que promove práticas mais “mão na massa”, criativas e inclusivas. “A ideia é que os alunos desenvolvam soluções, sistemas ou protótipos, com incentivo para pesquisar, entender os contextos, testar soluções, ver o que deu errado e, depois, fazer de novo”, explica.

Para Rocha, as escolas deveriam dialogar com a realidade dos alunos, seu cotidiano, sua etnia, sua história. Isso seria um ponto de partida para o reforço da autoestima, do autoconhecimento e do trabalho em grupo.

Helena Singer, líder de estratégia de juventude para América Latina na ONG Ashoka, que trabalha na identificação e apoio a empreendedores sociais no mundo inteiro, sonha com escolas incubadoras de projetos locais e produtoras de tecnologia. Para isso ser possível, acredita, elas teriam de fazer parcerias com empresas e receber recursos públicos.

Segundo o IBGE, em 2021, 31% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam desempregados. Valorizar a educação profissional e tecnológica (EPT), seja no ensino técnico de nível médio ou na graduação tecnológica, derrubaria essa taxa, superior à da população geral (hoje em 9,3%). “O itinerário de formação técnica e profissional representa para os jovens uma inserção qualificada, e não precarizada, no mundo do trabalho”, diz Ana Inoue, superintendente do Itaú Educação e Trabalho (IET).

A EPT tem potencial de transformação socioeconômica, mas ela precisa de políticas públicas consistentes e da participação do setor produtivo para se consolidar, diz Inoue. A pedido do IET, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizou um estudo sobre a EPT. “Nos países membros da OCDE, a média é de 42% de jovens em cursos técnicos, enquanto no Brasil é de 11%. Há muito a ser explorado”, analisa. O Plano Nacional de Educação (PNE) prevê triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio até 2024. Mas, até 2021, só 40% da meta foi atingida.

Essa expansão requer comprometimento de todos os estados e uma política nacional de educação profissional e tecnológica, do que o Brasil não dispõe, lembra Inoue. A participação do setor produtivo na construção dos currículos dos cursos, para que estejam alinhados ao potencial econômico local, também ajudaria.

O acesso à escola se democratizou no Brasil. Na primeira infância, quase todas as crianças vão à escola. Mas o gargalo vem depois: 40% não concluem o ensino médio. “Servir toda a população na educação básica é um enorme ganho e um enorme sucesso para a sociedade”, afirma Rocha, da Fundação Lemann. Mas falta atingir bons níveis de qualidade na educação. Um caminho seria a escola concentrar esforços no ideal de Piaget: aprender a aprender.

Singer diz que as escolas pararam no tempo, o que ajuda a explicar a situação. O modelo defasado causa desmotivação de alunos e professores. Além disso, o conteúdo repassado não responde mais às necessidades ambientais, sociais e econômicas do mundo. Para ela, empresas compostas de equipes fluidas, integradas e dinâmicas deveriam servir de exemplo para as escolas buscarem novas formas de organização.

O trabalho da Ashoka busca desenvolver empatia, empreendedorismo, criatividade e colaboração. “Isso deve envolver família, escola e comunidade”, explica Singer, que também integra o Movimento de Inovação na Educação. A iniciativa lista bons exemplos praticados no País. Uma delas é o Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), de Pernambuco, que forma os alunos em tecnologia rural.

Rocha lembra também da questão da equidade racial. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2019, no início do ensino fundamental, 31% dos alunos negros tiveram aprendizado adequado em matemática. Entre brancos, a taxa foi de 56%. “O Brasil tem de reverter uma tendência negativa de ampliação de desigualdade”, diz. Os desafios são muitos, e se sobrepõem.

Como reverter o gargalo em tecnologia
Sobram vagas e faltam profissionais em um setor superaquecido e estratégico

Hoje, um dos maiores desafios dos recrutadores é encontrar candidatos na área de tecnologia. Baixa performance e alta rotatividade são uma constante. Há mais vagas sendo criadas do que pessoas se formando, então a urgência abriu espaço para cursos curtos e imersivos.

Em 2014, a consultoria McKinsey lançou a Generation, ONG dedicada a inserir jovens no mercado de trabalho. A iniciativa está presente em 16 países e, desde 2019, atua no Brasil, onde oferece cursos compactos técnicos de tecnologia. Segundo Adriana Carvalho, CEO da Generation, a ONG já formou 2,3 mil pessoas, e o índice de empregabilidade é superior a 80%. Para ela, a formação de profissionais é uma abordagem com mais benefícios para as empresas ao longo do tempo. “A estratégia de ‘rouba-monte’, em que uma empresa tira o profissional da concorrência, é de curto prazo e não resolve os problemas estruturais”, explica.

A falta de pessoas qualificadas em TI é tanta que a lógica do mercado se reverteu. “São os talentos que escolhem a empresa. A área de recrutamento e seleção agora tem de desempenhar um papel comercial, de vendedor, para atrair os profissionais”, diz Karla Silva, da Gateware. Não está nada fácil. As empresas brasileiras têm de concorrer com as internacionais, que oferecem salários em dólar. Fabio Gabbay, da Recrutaê, diz que nem adianta brigar quando entra proposta de fora: “É uma pesca predatória”. A disputa por talentos, segundo ele, vem até da vizinha Argentina. Por outro lado, ele também vê empresas brasileiras criando hubs no exterior, por exemplo, em Portugal.

Uma alternativa adicional para atrair talentos na área de tecnologia, que poderiam passar batidos pelo radar das organizações, como sugere Gabbay, é a organização de hackathons. “Neles, é possível descobrir pérolas que não se encontram nos meios tradicionais”, afirma.

Artigo publicado na HSM Management nº 154

__Leia também: [Diversidade além do discurso](https://www.revistahsm.com.br/post/diversidade-alem-do-discurso)__

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