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O desafio da cegueira ética

A visão de futuro para o sucesso empresarial responsável no século 21 passa por uma cultura ética – e o papel do conselho nisso é relevante

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”As empresas são o motor do crescimento da sociedade. Ajudá-las a se tornarem mais éticas é o projeto mais importante da humanidade atualmente.” Essa frase, formulada pelo professor da New York University Jonathan Haidt, resume a importância de melhorarmos o comportamento ético no mundo empresarial para que possamos ter uma sociedade mais saudável e avançada no século 21. 

Os inúmeros escândalos corporativos que temos testemunhado nos últimos anos demonstram a urgência e relevância do tema. Esses delitos – que vão muito além da corrupção e abarcam fraudes, evasão fiscal, desastres ambientais, violação de direitos humanos e desrespeito aos consumidores, entre outros problemas – têm ocasionado enormes prejuízos econômicos e sociais a todos nós. 

A questão-chave é a seguinte: por que esses problemas colossais de desgoverno empresarial têm ocorrido com tanta frequência? Seriam esses casos culpa de algumas poucas maçãs podres – isto é, de um pequeno número de indivíduos mal-intencionados que atuam de maneira fria e racional no topo das organizações?

Depois de estudar o assunto em profundidade e analisar várias organizações envolvidas em graves problemas, tenho uma resposta: os escândalos que temos testemunhado quase que diariamente não são resultado de algumas “maçãs podres”.

O que se observa, na verdade, é que a obsessão pelo resultado financeiro de curto prazo, ou o foco no atendimento a interesses políticos, no caso de estatais, tem levado muitas organizações a utilizar a governança como mera ferramenta de marketing e a desenvolver sistemas de gestão disfuncionais, que acabam por induzir pessoas comuns – sem qualquer transtorno de personalidade e, na maioria das vezes, inclusive, com bons valores e intenção inicial – a se tornarem eticamente cegas.

Essa cegueira ética, por sua vez, deriva de um processo de “murchamento ético”, que faz com que os executivos fiquem cada vez menos sensíveis às implicações de suas ações ou omissões sobre terceiros, até um ponto em que não percebem mais os impactos do que estão fazendo. E é esse processo de murchamento ético que leva pessoas com boa intenção inicial a se omitir ou mesmo a contribuir ativamente para condutas antiéticas ou inclusive ilegais ao longo do tempo. 

**O PROBLEMA**

É importante entender que a cegueira ética não surge do nada. Ela é resultado de três camadas de pressões muito comuns no ambiente corporativo e de uma dinâmica temporal perversa: 

**A primeira camada de pressões** que pode prejudicar nosso julgamento ético é o contexto imediato em que o executivo está inserido. Aqui, estão presentes as situações do dia a dia, como a pressão dos superiores, dos pares e inclusive a pressão autoimposta decorrente do cargo. No caso dos superiores, por exemplo, a moralidade é frequentemente deixada de lado quando se recebe uma ordem, principalmente em ambientes altamente hierarquizados como a grande maioria das empresas. Já no caso da pressão autoimposta, tendemos a mudar de comportamento dependendo da função social que se espera de nós. Como exemplo, o que as pessoas tipicamente esperam de um diretor-comercial de uma empreiteira? Fechar contratos a qualquer custo? Em resultado, muitos indivíduos passam a se comportar como verdadeiros prisioneiros de um papel.

**A segunda camada de pressões** que pode levar à cegueira ética é o contexto organizacional. Nesse caso, encontram-se fatores como: metas irrealistas, que levam as pessoas até o limite para alcançá-las, inclusive do ponto de vista ético; os sistemas de incentivos baseados apenas no alcance de alguns indicadores financeiros, o que automaticamente gera uma visão de túnel nos executivos; os sistemas de avaliação de desempenho, que fomentam um ambiente darwinista de luta pela sobrevivência nas empresas, em que alguns poucos vencedores levam tudo e os demais são considerados fracassados; e também a utilização de uma linguagem diária repleta de eufemismos ou analogias de guerra. 

Os eufemismos, por exemplo, convertem as condutas antiéticas em algo aceitável ou normal. As pessoas que recebem o suborno são chamadas de “consultores de negócios”, como no caso da Siemens da década passada, enquanto a área responsável pelo pagamento é chamada de “departamento de operações estruturadas”, como no caso da Odebrecht. 

**A terceira camada é o contexto social.** É a influência do ambiente institucional no qual se situam as pessoas e as empresas. Se o entorno institucional é mais permissivo em relação a violar as regras, então ele ajuda a normalizar as condutas antiéticas, uma vez que as pessoas passam a dizer: “Olha aí, aqui é assim mesmo, todo mundo aqui faz a mesma coisa, está tudo bem!”.

Os dogmas muitas vezes inquestionáveis ensinados pelas escolas de negócios, como a maximização do valor para os acionistas, têm sua parcela de culpa aí, uma vez que tendem a induzir os executivos a tomar decisões amorais baseadas exclusivamente na análise de custos e benefícios econômicos. Há um forte vínculo entre os modelos mentais que as pessoas aprendem nas escolas de negócios e suas decisões mais adiante como executivos. 

O contexto social contempla ainda as práticas de outras empresas do setor, já que as empresas tendem a seguir as normas formais e informais de seus pares. Vale mencionar, como exemplo, que a frase “o meu setor é assim, ele funciona assim” é uma das ouvidas para justificar comportamentos questionáveis. 

É bom notar que, em conjunto com as pressões do contexto, temos o impacto do tempo – o tempo pode contribuir para a cegueira ética de três modos:

• Primeiro, como elemento de pressão que leva as pessoas a tomar decisões irrefletidas. Ter uma boa conduta ética depende de nossa capacidade de refletir sobre as consequências de nossas ações ou omissões. Assim, quanto menos tempo temos para decidir, maior é a probabilidade de tomarmos decisões em piloto automático das quais podemos nos arrepender futuramente.

• Segundo, o tempo como elemento que solidifica as rotinas corporativas. Muitas decisões nas empresas se tornam cada vez mais rotineiras com o tempo, fazendo com que as pessoas se acostumem a elas e passem a segui-las sem questionamento.

• Terceiro, o tempo como elemento gerador de mudanças graduais e imperceptíveis. Nesse caso, nossa percepção do que é “normal” é o que muda, inconscientemente, e a maioria das pessoas simplesmente não percebe a erosão gradual de seus padrões éticos. Como disse um ex-executivo de uma empresa envolvida em uma grande fraude, “você faz uma vez, cheira mal… você faz outra vez, já não cheira tão mal”.

O resultado de todo esse processo é que o executivo pode, ao final do dia, tomar decisões antiéticas ou até mesmo ilegais. Em alguns casos – e cabe destacar que isso tem ocorrido em uma frequência cada vez maior –, o indivíduo termina por sofrer as consequências de seus atos e, então, ter uma compreensão mais ampla de suas práticas. Antes disso, não. Logo, o maior risco para a boa governança das empresas não é aquele oriundo das maçãs podres, e sim o que advém de pessoas comuns, que passam a se omitir – e a racionalizar seu comportamento.

**A SOLUÇÃO**

Bom, e dado esse cenário, qual é a solução? O que deve ser feito para instaurar um comportamento genuinamente ético nas empresas? 

Para começar, a solução vai muito além da criação de regras e controles, como os tão falados programas de compliance. Esses programas têm sua utilidade quando aplicados na dose certa, é claro, porém não devem ser vistos como uma panaceia que solucionará todos os problemas do mundo empresarial.

Aliás, várias evidências mostram, por exemplo, que o foco excessivo em regras e controles pode simplesmente piorar a situação, uma vez que estimula uma mentalidade mais amoral do tipo: “tudo o que não é proibido é permitido”.

Os programas de compliance se dedicam, além do mais, a inibir a corrupção realizada às custas da empresa, e não a corrupção – ou outras práticas antiéticas, como enganar clientes ou prejudicar o meio ambiente – realizadas em favor da organização. Em muitos escândalos recentes, por exemplo, os transgressores justificaram seu comportamento antiético com base no argumento de que estavam procurando “criar valor” para suas empresas.

(Como tenho reiterado nos últimos anos, a ética vai muito além da mera conformidade com as normas, e investir em programas de compliance sem mudança de mentalidade é o equivalente a enxugar gelo.)

O que é preciso, na verdade, é de uma mudança mais estrutural – não apenas incremental – no mundo dos negócios. Precisamos de uma nova visão para a boa gestão e a governança das empresas.

Esse novo paradigma deve se basear, em primeiro lugar, em uma cultura ética que desperte o melhor – e não o pior – das pessoas. E uma cultura, por sua vez, promovida por líderes conscientes, que tenham como missão pessoal deixar um legado positivo por meio da busca de um propósito mais amplo do que apenas o resultado financeiro.

Os escândalos que temos visto demonstram que é impossível dissociar esses temas e que a governança corporativa se torna vazia, completamente oca, se é tratada separadamente da cultura e da liderança da organização.

De maneira específica, o conceito“cultura ética” diz respeito aos sistemas formal e informal de valores promovidos pela empresa, que têm como objetivo promover decisões e comportamentos éticos no dia a dia, a saber:

**O sistema formal ou tangível é o que se vê.** É o estabelecido nos documentos e nos procedimentos da organização, como o código de conduta, a declaração de missão, as políticas para contratar, avaliar o desempenho e promover as pessoas etc.

**O sistema informal ou intangível representa os sinais muitas vezes implícitos sobre o comportamento esperado das pessoas.** Isso inclui as normais sociais e os padrões de comportamento na empresa, as regras não escritas para sobreviver e prosperar na organização, as principais histórias de corredor, as atitudes das pessoas de referência e a linguagem utilizada.

É essencial que os sistemas formal e informal estejam sempre alinhados, uma vez que esse nível de alinhamento é o que determina a qualidade da cultura ética da empresa. Quando há uma grande discrepância entre os dois sistemas, como vimos em diversos escândalos recentes, então as regras formais se tornam irrelevantes e prevalecem as normas tácitas e os hábitos cotidianos. 

Instaurar uma cultura ética é a chave para prevenir comportamentos antiéticos em qualquer organização e isso é muito mais importante do que tentar controlar tudo (e todos). 

A implantação de uma cultura ética, que é a base da boa governança, depende de líderes conscientes, uma vez que os dirigentes são obviamente os maiores responsáveis pelos comportamentos que proliferam em suas organizações. 

Nesse sentido, vale destacar que as empresas no século 20 se caracterizaram por dois tipos de liderança: o líder militar, que é aquele indivíduo autocrático que não aceita ser contrariado; e o líder mercenário, o indivíduo que não possui envolvimento emocional com a organização e apenas se concentra nos números de curto prazo com o objetivo de maximizar suas perspectivas de carreira. 

É essencial que as empresas passem a ter uma terceira categoria de líderes – a dos missionários. Trata-se de pessoas com elevada maturidade para perseguir uma missão maior e elevada inteligência – não apenas analítica, mas principalmente emocional, moral e sistêmica.

Esses líderes devem ser primordialmente motivados pelo desejo de servir – não de serem servidos –, de maneira a deixar um legado positivo. Também devem ser capazes de exibir características tidas atualmente como “femininas”, como empatia, humanidade, cooperação, intuição, sentimento e valorização de relacionamentos.

Não há empresa ética com líderes cujo único valor é o dinheiro, assim como as más condutas não prosperarão em ambientes cujos líderes possuem alto nível de conscientização.

Se queremos, portanto, fazer com que as empresas migrem para um patamar mais elevado de conscientização, precisamos de líderes com uma visão mais ampla de seu papel e de sua responsabilidade. Afinal de contas, como bem concluiu o autor do livro Reinventando as organizações, Frederic Laloux, o nível de conscientização de uma organização para com seus públicos de interesse não conseguirá exceder o nível de conscientização de seus líderes como seres humanos. 

> **CARACTERÍSTICAS**
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> Segundo Alexandre di Miceli da Silveira, a cultura ética depende da presença dos seguintes elementos em uma organização:
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> **Confiança,** tanto vertical, entre diferentes níveis hierárquicos, quanto horizontalmente, entre pares.
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> **Transparência e prestação de contas elevadas.**
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> **Segurança psicológica**, de maneira que as pessoas não tenham medo de ser punidas por expressarem sua visão sobre o que acreditam ser o melhor curso de ação para a organização. Vale a pena destacar que os ambientes em que o medo prevalece são os mais propensos à cegueira ética e, se há uma palavra por trás dos escândalos que temos visto, essa palavra se chama medo.
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> **Justiça organizacional,** ou seja, a percepção de que a empresa é justa com seus funcionários em questões como a alocação de recursos, o acesso à informação, as promoções e os créditos pelas boas ideias, entre outras coisas.
>
> **Empatia,** a capacidade de criar um ambiente no qual as pessoas sintam as implicações de suas ações sobre os demais stakeholders.
>
> **Motivação intrínseca,** a motivação interna ou natural em fazer o melhor que todos nós temos de maneira latente e que depende de um contexto adequado para ser ativado.
>
> **Sentimento, cuidado e afeto,** uma vez que as emoções positivas são essenciais para a ética, a felicidade, a criatividade e a produtividade.
>
> **Diversidade em todas as suas dimensões,** com o objetivo de fomentar diferentes visões de mundo na empresa, algo alcançado pela diversidade cultural, de formação, de idade, experiências, e, naturalmente, de gênero.
>
> **Comunidade e senso de propósito,** para que todos sintam que fazem parte de algo maior e mais duradouro que nós mesmos alinhado ao bem comum.

**O CONSELHO**

Infelizmente, muitos conselhos tendem a se concentrar só em números e formalismos de governança, sem praticar a cultura desejada nem exigir dos gestores condutas em linha com os valores e o propósito maior da empresa. Nesses casos, são mais parte do problema da cegueira ética do que de sua solução.

Por outro lado, vale destacar que o conselho pode ter um papel-chave na promoção de uma cultura saudável. Além de liderar pelo exemplo, é fundamental que o conselho selecione, avalie e até mesmo substitua o CEO com base em sua capacidade de incorporar e implantar a cultura desejada. 

Se o conselho escolher um CEO missionário que acredita nos valores da transparência e diversidade, por exemplo, esses temas passarão a permear toda a organização. Adicionalmente, cabe aos conselheiros criar ferramentas e indicadores a fim de avaliarem se a cultura idealizada vem sendo de fato praticada no cotidiano. 

É cada vez mais claro que o sucesso empresarial responsável no século 21 dependerá de práticas de vanguarda de gestão, governança, cultura ética e lide-rança consciente: todos esses, conceitos mensuráveis e  que devem ser revistos continuamente pelas diretorias e – principalmente – pelos conselhos. 

Como  as  evidências demonstram,  investir  nessa visão é o que nos levará a empresas mais resilientes, mais éticas, mais inovadoras e com melhor desempenho em todas as dimensões.

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