Soluções TerraDois

Eu é um outro

O verso de Arthur Rimbaud aponta à forma de se proteger da epidemia de invasão de privacidade
Psicanalista e psiquiatra, doutor em psicanálise e em medicina. Autor de vários livros, especialmente sobre o tratamento das mudanças subjetivas na pós-modernidade, recebeu o Prêmio Jabuti em 2013. É criador e apresentador do Programa TerraDois, da TV Cultura, eleito o melhor programa da TV brasileira em 2017 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Compartilhar:

Como se defender frente a invasão tecnológica de nossas intimidades? Como se proteger dos olhos e das orelhas espalhados por todo canto, gulosos de lhe conhecer em detalhes? A profecia de George Orwell, em seu livro 1984, se concretizou. O “Grande Irmão” nos assusta tal qual um superego tirânico, coletivo e sorrateiro sempre preparando uma acusação de um delito que será logo revelado ao mundo. Em vista disso, assistimos à multiplicação de defesas: vidros escuros, detectores de metais, hackers do bem, criptografias, senhas e mais senhas, condomínios fechados e muitas mais. Ao contrário de Caetano Veloso, que pede “não se esqueça de mim, não desapareça”, tudo o que hoje pedimos é: esqueça.

Ainda recentemente, sobre isso, o Direito ao Esquecimento foi julgado no Supremo Tribunal Federal. O voto do relator, ministro Dias Toffoli, contra esse Direito, foi acompanhado por todo o plenário com uma só exceção. Vale a pena a leitura do voto que aponta o risco de apagarmos a história se aceitarmos tal Direito.
Que saída então podemos encontrar para o íntimo de nós mesmos não ser violado? Precipitando a resposta diria com o verso de Rimbaud que uma vez que “Eu é um outro”, tudo o que de mim captarem será sempre de um outro.

Esclareço. Muito além de discussões ministeriais sobre a cor do cobertor que envolve um recém-nascido, o processo de humanização se dá pela história familiar que nos acolhe. Peguemos um exemplo simples, o nome de uma pessoa. Que o leitor se pergunte por que se chama José, Maria, Silvio ou Ana. Rapidamente se dará conta de como a sua identidade foi construída a partir do outro. Vejamos uma experiência comum à grande maioria das pessoas. Quando Maria atinge os 2 anos, ela pede para sua mãe: “Maria quer água”. A mãe, julgando que sua filha já está grandinha, lhe contesta: “Minha filhinha, você não deve dizer Maria quer água, mas, sim, eu quero água”. Maria responde: “Você também quer água, mamãe?”. E aí Maria recebe a interpretação crucial: “Não, minha filha, você tem que entender que eu é você”. Assim surgimos como um eu num lugar de um outro, dando razão ao poeta: “eu é um outro”.

Compreender esse fato não é difícil, espero. O difícil é abrir mão da dependência do olhar do outro, da aprovação do outro, do aplauso do outro. Esses fatores fazem com que acabemos dando consistência a olhares e escutas perversos. Parodiando Disraeli, se conseguirmos seguir o conselho “Não se explique, não se justifique”, mostraremos que o que a tecnologia capta do eu é só espuma.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Organização

Saúde psicossocial é inclusão

Quando 84% dos profissionais com deficiência relatam saúde mental afetada no trabalho, a nova NR-1 chega para transformar obrigação legal em oportunidade estratégica. Inclusão real nunca foi tão urgente

Empreendedorismo
O Brasil já tem 408 startups de impacto – 79% focadas em soluções ambientais. Mas o verdadeiro potencial está na combinação entre propósito e tecnologia: ferramentas digitais não só ampliam o alcance dessas iniciativas, como criam um ecossistema de inovação sustentável e escalável

Bruno Padredi

7 min de leitura
Finanças
Enquanto mulheres recebem migalhas do venture capital, fundos como Moon Capital e redes como Sororitê mostram o caminho: investir em empreendedoras não é ‘caridade’ — é fechar a torneira do vazamento de talentos e ideias que movem a economia

Ana Fontes

5 min de leitura
Empreendedorismo
Desde Alfred Nobel, o ato de reconhecer os feitos dos seres humanos não é uma tarefa trivial, mas quando bem-feita costuma resultar em ganho reputacional para que premia e para quem é premiado

Ivan Cruz

7 min de leitura
ESG
Resgatar nossas bases pode ser a resposta para enfrentar esta epidemia

Lilian Cruz

5 min de leitura
Liderança
Como a promessa de autonomia virou um sistema de controle digital – e o que podemos fazer para resgatar a confiança no ambiente híbrido.

Átila Persici

0 min de leitura
Liderança
Rússia vs. Ucrânia, empresas globais fracassando, conflitos pessoais: o que têm em comum? Narrativas não questionadas. A chave para paz e negócios está em ressignificar as histórias que guiam nações, organizações e pessoas

Angelina Bejgrowicz

6 min de leitura
Empreendedorismo
Macro ou micro reducionismo? O verdadeiro desafio das organizações está em equilibrar análise sistêmica e ação concreta – nem tudo se explica só pela cultura da empresa ou por comportamentos individuais

Manoel Pimentel

0 min de leitura
Gestão de Pessoas
Aprender algo novo, como tocar bateria, revela insights poderosos sobre feedback, confiança e a importância de se manter na zona de aprendizagem

Isabela Corrêa

0 min de leitura
Inovação
O SXSW 2025 transformou Austin em um laboratório de mobilidade, unindo debates, testes e experiências práticas com veículos autônomos, eVTOLs e micromobilidade, mostrando que o futuro do transporte é imersivo, elétrico e cada vez mais integrado à tecnologia.

Renate Fuchs

4 min de leitura
ESG
Em um mundo de conhecimento volátil, os extreme learners surgem como protagonistas: autodidatas que transformam aprendizado contínuo em vantagem competitiva, combinando autonomia, mentalidade de crescimento e adaptação ágil às mudanças do mercado

Cris Sabbag

7 min de leitura