Os últimos 150 anos, desde a Revolução Industrial, foram um período de desenvolvimento tecnológico, científico e humano exponenciais. Deixamos de estar limitados ao uso da força de humanos e animais para controlar combustíveis fósseis e a eletricidade. Em 1870 éramos 1,3 bilhão de pessoas, 90% morando em áreas rurais e três quartos em pobreza extrema. Hoje ultrapassamos a marca das 8 bilhões de pessoas, sua maioria urbana e com nove em cada dez acima da linha da pobreza.
Nunca na história a humanidade deteve tanta capacidade produtiva. Uma fazenda de milho nos Estados Unidos produz hoje seis vezes mais por hectare do que em 1870. No Brasil, a produtividade da soja dobrou apenas nos últimos 50 anos. Uma pessoa viva hoje tem disponível em média quatro vezes mais energia por ano, entre eletricidade, combustíveis e alimentos, do que um antepassado do fim do século 19.
Por um lado, essa abundância decorre do grande avanço tecnológico: um trator, um forno industrial ou um computador hoje é infinitamente superior àqueles de um século atrás. Por outro lado, uma parte da afluência que temos hoje se deve à dilapidação do capital natural que recebemos das gerações anteriores.
Antes de continuar, é importante definir alguns conceitos: assim como o capital é o conjunto de bens que garante bem-estar para os seres humanos, o capital natural é o conjunto de todos os bens naturais que contribuem para a geração de bem-estar, geralmente na forma dos chamados serviços ecossistêmicos. Enquanto uma fábrica produz carros, uma floresta regula o ciclo da água, fornece frutos, poliniza plantações, captura e estoca carbono, mantém a biodiversidade, dentre uma infinidade de outras contribuições para as pessoas.
Pois bem: desde os anos 1970, a pegada ambiental da humanidade, ou seja, o impacto de toda nossa produção e consumo no planeta, é maior do que a bioprodutividade, a capacidade dos sistemas naturais de absorver esse impacto. Estamos há 50 anos operando no “cheque especial ambiental”, reduzindo áreas de biomas naturais que contribuem de forma importante para nosso bem-estar e lançando na atmosfera poluentes que já desestabilizam o clima global.
A dilapidação constante do capital natural disponível começa a ser percebido como ameaça à estabilidade dos sistemas naturais dos quais toda a humanidade depende. Da mesma forma que uma fábrica, máquina ou outro bem de capital que não receba os investimentos necessários para manutenção, também o capital natural perde a capacidade de gerar serviços ecossistêmicos se for depredado.
Desde 2009, o Centro de Resiliência de Estocolmo avalia os chamados limites planetários, indicadores globais dos principais sistemas dos quais dependemos para a manutenção de nosso modo de vida. No primeiro semestre o centro publicou sua terceira avaliação: já ultrapassamos seis dos nove limites mundiais avaliados.
O atual cenário deixa claro que a visão tradicional, de buscar integração entre economia e meio ambiente que seja apenas “sustentável”, não será o suficiente para garantir um ambiente próspero para a humanidade. É crescente o movimento por uma economia regenerativa, que vá além de minimizar impactos negativos no capital natural, mas que busque ativamente afetar de forma positiva a natureza e reverta os danos causados até aqui.
O movimento, apesar de relativamente novo, vem ganhando importante tração com consumidores e já afeta cadeias de fornecimento de escala mundial: marcas globais como Nespresso e Patagonia já possuem produtos comercializados com certificações de práticas regenerativas. Por sua grande área e imenso patrimônio natural, o Brasil tem potencial enorme para liderar a construção de uma economia verdadeiramente regenerativa.
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## Contenção de danos
Antes de qualquer coisa, atingir regeneração significativa em escala nacional ou global depende de eliminarmos ou restringirmos ao mínimo a degradação ambiental. No caso brasileiro, isso requer em primeiro lugar zerar o desmatamento ilegal e a perda de biomas nativos, o que responde por 50% de todas as emissões de gases de efeito estufa do País.
Não é tarefa simples, dado que o todo o modelo de desenvolvimento econômico até este momento, no Brasil e no mundo, foi baseado na substituição de florestas por pastagens ou lavouras. O valor estimado pelo Fórum Econômico Mundial para os serviços ecossistêmicos prestados pelas áreas naturais no planeta é da ordem dos US$ 120 trilhões, dos quais praticamente nada é efetivamente pago. Enquanto esses ativos não forem devidamente valorados, nenhuma ação de combate ao desmatamento será perene em escala planetária.
No caso específico de regiões com maior pressão por desmatamento, bem como no caso de áreas com autorizações de supressão vegetal, os créditos de carbono por desmatamento evitado (REDD+) são uma alternativa para produtores, apesar dos desafios de garantir acesso para propriedades menores e credibilidade ao mercado como um todo.
É importante ter em mente que a maior parte das áreas nativas do Brasil não são elegíveis para receber créditos de carbono, então faz-se necessário construir diferentes alternativas para o pagamento por serviços ambientais (PSA). O fundo Amarí, construído pela GFB e pela Indie Capital, por exemplo, usa CPRs Verdes aliadas a CPRs tradicionais para prover crédito para custeio de safra a produtores, que recebem um “cashback ambiental” por manterem suas APPs e reservas legais de forma adequada.
## Circularidade
Os impactos ambientais negativos não são limitados ao desmatamento: metade da população brasileira ainda não tem esgoto tratado e metade dos municípios do País ainda adota lixões ilegais como “solução” para descartar seus resíduos sólidos. O recente marco legal do saneamento, aprovado em 2020, melhorou o ambiente de investimentos no setor, mas ainda serão necessários R$ 500 bilhões em investimentos para garantir acesso universal a água potável e tratamento de esgoto. Não existe economia regenerativa enquanto houver esgoto despejado in natura nos rios brasileiros.
Outra questão importante, que tem impacto tanto nos descartes de resíduos quanto na demanda por matéria-prima virgem, é a reciclagem. Apenas 3,3% dos resíduos sólidos urbanos passam por coleta seletiva no Brasil, que recicla apenas (perdão pela redundância) 2,5% do lixo gerado em nossas cidades.
## Agricultura regenerativa e reflorestamento
Na realidade brasileira, as maiores oportunidades na economia regenerativa passam pela recuperação de pastagens degradadas e a adoção de práticas agroflorestais, como integração lavoura-pecuária-floresta.
Para se ter noção do tamanho desta oportunidade, o Brasil possui cerca de 100 milhões de hectares de pastagens degradadas, uma área equivalente ao tamanho de países como Venezuela ou Nigéria. Isso considera apenas aquelas pastagens em nível moderado ou alto de degradação.
Atualmente já existem empresas e fundos de investimento, como AGBI e Vox Capital, adquirindo terras degradadas para investir em sua recuperação e valorização: transformam pastagens improdutivas em lavouras de soja e milho, com solo renovado e receita por hectare muito superior.
Essa recuperação de áreas pode ir além da transformação em lavouras e adotar uma vasta gama de práticas de integração entre lavoura-pecuária e lavoura-pecuária-floresta, desde as mais simples até verdadeiras agroflorestas com enorme biodiversidade.
No ano de 2020, por exemplo, a Embrapa publicou um protocolo de carne carbono neutro, que utiliza eucalipto no meio das pastagens para compensar as emissões de gases de efeito estufa do gado. A Marfrig adota esse protocolo na linha Viva.
Segundo o Instituto Escolhas, a recuperação de apenas 1 milhão de hectares em APPs e Reservas Legais de pequenas propriedades com sistemas agroflorestais tem o potencial de plantar 2 bilhões de árvores, capturando 182 milhões de toneladas de carbono, produzindo 156 milhões de toneladas de alimentos e gerando uma receita de R$ 260 bilhões aos fazendeiros.
O primeiro grande desafio para a adoção em larga escala de sistemas agroflorestais (SAFs) é a necessidade de capital: o mesmo estudo aponta um custo da ordem de R$ 33 bilhões para implantar esse volume de SAFs. Dado que o retorno estimado é significativamente superior, é necessário criar instrumentos de financiamento que se adequem a esse tipo de projeto para que seja realizado todo o potencial dos SAFs na recuperação de áreas degradadas.
Vencido o desafio, existem duas questões que não podem ser ignoradas: a dificuldade de execução, uma vez que praticamente inexiste maquinário para mecanização de SAFs; a mão de obra precisa ser treinada para novas formas de agricultura e as cadeias de fornecimento de mudas são insipientes; e a dificuldade mercadológica, dada a grande concentração da demanda agrícola, que faz com que apenas quatro culturas, soja, milho, cana-de-açúcar e arroz, respondam por 90% da área de lavoura no Brasil.
Outra destinação possível para áreas degradadas é o reflorestamento ecológico, cujo maior objetivo é recuperar as características naturais das áreas anteriormente desmatadas. Isso pode ocorrer tanto por determinação legal quanto para explorar o mercado de carbono. Inclusive, os créditos gerados nesse tipo de projeto são considerados de alta qualidade, porque sua medição é tecnicamente menos controversa e eles são acompanhados de enormes cobenefícios, como volta de fauna e flora, microclima e demais serviços ecossistêmicos.
O Brasil se comprometeu em sua meta junto ao Acordo de Paris a recuperar 12 milhões de hectares de biomas nativos, mas pouco foi efetivamente realizado nesses oito anos: menos de 100 mil. Recentemente, algumas iniciativas privadas, como Regreen, Biomas e Mombak, começaram a explorar essa oportunidade. O Instituto Escolhas estimou a necessidade de R$ 228 bilhões em investimentos para reflorestar essa área, para uma receita da ordem de R$ 776 bilhões e remoção de 4,3 bilhões de toneladas de carbono da atmosfera.
## Materiais renováveis: o pré-sal verde
A busca pela circularidade nas cadeias produtivas regenerativas pode colocar o Brasil como líder global no fornecimento de insumos sustentáveis para diversas indústrias, em substituição a fontes fósseis e não renováveis. A produção dessas matérias-primas pode ser um grande vetor de regeneração no País.
Um exemplo são os biocombustíveis. Mesmo que o etanol em especial seja amplamente utilizado no Brasil, eles ainda respondem por uma fração pequena da utilização total de combustíveis. Inovações como o etanol de 2ª geração podem aumentar a oferta de insumos verdes na cadeia petroquímica.
É importante incluir nesse mercado da química verde outras fontes de biomassa, como o agave, que já possui biorrefinaria-piloto operada pela Shell em parceria com a Unicamp, a macaúba e o dendê, explorado por empresas como BBF e BBB. O zoneamento agroecológico da palma mapeou mais de 30 milhões de hectares de áreas degradadas que podem ser recuperadas com dendê, produzindo um óleo altamente energético e que atualmente é visto como vetor de desmatamento no sudeste asiático. Essas culturas podem ser insumos para indústrias dependentes de petróleo, ofertando biodiesel e combustível sustentável de aviação, por exemplo.
As oportunidades para substituição por matérias-primas regenerativas não se limitam à química verde e ao setor energético. As fibras de origem natural também podem substituir diversos insumos não renováveis, desde o algodão ou a viscose para tecidos até a madeira engenheirada que pode ter função estrutural e transformar construções de emissoras de carbono à base de cimento e aço em estoques de carbono à base de madeira.
REDUZIR OS IMPACTOS NEGATIVOS DE NOSSA PRODUÇÃO e consumo é imperativo. Da mesma forma, chegou a hora de a humanidade recuperar parte do estrago deixado no planeta até aqui, a fim de garantir a estabilidade necessária para que continuemos um mundo cada vez mais amigável para a atual e as futuras gerações.
Nesse contexto, o Brasil tem todas as características naturais para liderar a construção de uma economia que seja realmente regenerativa. É importante agora desenvolvermos os instrumentos financeiros, legislação, capacidade técnica, segurança jurídica e atração de capital em escala global, sem as quais todo esse potencial natural não será de forma alguma atingido. Na Global Forest Bond, estamos buscando fazer tudo isso na medida de nossas possibilidades. E em sua empresa?
__Leia também: [A indigenomics, o indigenismo e a gestão de negócios](https://www.revistahsm.com.br/post/a-indigenomics-o-indigenismo-e-a-gestao-de-negocios)__
Artigo publicado na HSM Management nº 160.