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Mudança inspirada em Paulo Freire

A Mercur, conhecida fabricante de borrachas do Rio Grande do Sul, renunciou ao lucro como único indicador de sucesso em nome de resultados melhores no futuro. Seu líder, Jorge Hoelzel Neto, vem fazendo os tradeoffs necessários, como conta o consultor Vicente Gomes
O case é de autoria de Vicente Gomes, consultor de empresas e autor de Liderança para uma Nova Economia, e é publicado com exclusividade em HSM Management.

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Você, gestor, já imaginou fazer uma mudança radical em uma empresa quase centenária, bastante tradicional, com 550 funcionários e navegando no azul? É o que está acontecendo, de 2008 para cá, com a gaúcha Mercur, que produz artefatos de borracha tão variados quanto pisos, revestimentos e bolas em Santa Cruz do Sul (RS). Um dia, em 2008, Jorge Hoelzel Neto, integrante da terceira geração da família no comando dos negócios, principal executivo da empresa desde 1991 e que hoje se denomina seu “conselheiro”, teve uma espécie de revelação, derivada de sua prática espiritual: sua empresa não estava no caminho certo. O empresário deu-se conta de que as organizações em geral, e a sua integrava o grupo, “olhavam apenas para o próprio umbigo”, esquecendo seu dever primordial de servir as pessoas –e, assim, tornavam-se reféns de seu capital. Com as irmãs, que o apoiaram, resolveu reescrever essa história, estimulando clientes, fornecedores e funcionários a integrar uma cadeia de produção e consumo sustentável e benéfica para o planeta. 

> **Fatos da Mercur**
>
> * Fundada em 1924 por Jorge e Carlos Hoelzel, descendentes de imigrantes alemães, para produzir artefatos de borracha que consertavam pneus. 
> * Sociedade anônima, não listada em bolsa, teve receita em 2013 de R$ 110,8 milhões e Ebitda de R$ 6,9 milhões. 
> * A fábrica tem 550 funcionários e produz 1,5 mil itens para o consumidor final, de prática de esportes e saúde, como bolas de exercício, bolsas térmicas e muletas. No segmento B2B, oferece soluções customizadas, como lençóis de borracha, pisos especiais, imobilizadores etc.

**VIRADA DE CHAVE**

Em 13 de julho de 2009, a proposta de mudar foi anunciada à comunidade de funcionários reunidos no auditório de um colégio próximo à sede da empresa. Jorge Neto, suas irmãs Débora e Flávia e o braço direito deles na operação da Mercur, o diretor Breno Strussmann, disseram: “Queremos o mundo de um jeito bom para todos. Ter produtos que levem bem-estar. Praticar a sustentabilidade em relação às pessoas. Atuar em mercados éticos, que valorizem a vida”. Poderia ser apenas mais um discurso motivacional para funcionário ver –e um futuro discurso de marketing para os consumidores finais. Mas não está sendo. 

**HIERARQUIA ACABA**

Em 2011, veio a primeira decisão da Mercur, que marcou o que ficou conhecido internamente como a “virada de chave”: eliminar os chefes. Os cinco diretores foram rebatizados de “facilitadores” e sua principal função passou a ser abrir os caminhos para a implantação dos propósitos direcionadores da companhia.

O que substituiu a chefia? Cada uma de suas áreas –suprimentos, logística, vendas, impacto no meio ambiente etc.– passou a ser coordenada por colegiados de 24 funcionários, que dariam sustentação às operações da empresa. Elimina¡do o “mandar e obedecer” característico das hierárquicas organizações atuais, cada pessoa da Mercur começou a ter de definir as próprias tarefas todos os dias, fazendo-o de maneira a complementar as tarefas do grupo e relacionando-se com os colegas em um aprendizado de respeito e tolerância. 

Para apoiar a reorganização, a empresa foi procurar os ensinamentos da pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, que propõe um ambiente escolar muito semelhante ao novo ambiente sem hierarquias da Mercur. A empresa fechou, então, um acordo com o Instituto Paulo Freire, de São Paulo, e aplicou uma espécie de versão empresarial de sua filosofia a um grupo de 100 funcionários, incumbidos de levar o conhecimento aos colegas. 

O programa educacional e a adaptação ao empoderamento duraram um ano e não foram à prova de tropeços. “Teve gente que pensou: ‘Bem, agora não tem chefe, não preciso trabalhar todo dia’. E não vinha para a empresa”, relembra Jorge Neto. 

Outros desabavam, desorientados sobre como agir. “O que fazíamos era pegar os funcionários em crise pela mão, conversávamos, explicávamos que nossa proposta era de uma nova leitura de vida”, conta o empresário. Mesmo assim, alguns não se identificaram com as transformações e deixaram a companhia. 

**OS PROPÓSITOS DIRECIONADORES**

Os colegiados de cada área passaram a ter iniciativas e tomar decisões com base em cinco propósitos direcionadores: 

1. Ter 30% de redução de insumos não renováveis até dezembro de 2014 e, nos produtos da linha de bem-estar, comprometer-se a usar só insumos renováveis. 

2. Construir novos modelos de negócio que maximizem ocupação e renda, beneficiando a população local. 

3. Não ter, até 2014, nenhum produto em portfólio que exija testes com organismos vivos em qualquer etapa do processo produtivo. 

4. Não fazer negócios com indústrias de tabaco, de armamentos, de jogos de azar ou cujas cadeias impõem maus-tratos a animais. 

5. Reduzir, ano após ano, a diferença entre o salário mais alto e o mais baixo. 

**AÇÕES COMPROVAM**

Inspiradas nesses direcionadores e apoiadas pelos facilitadores, várias iniciativas dos funcionários vêm implementando a mudança. 

**_Óleo de mamona para beneficiar a população local e substituir o tabaco_**

O óleo de mamona, matéria-prima empregada na produção dos artigos da Mercur, sempre foi levado de São Paulo para o Rio Grande do Sul para suprir a demanda de cerca de 80 toneladas por ano. Como se trata de um vegetal relativamente comum e de plantio descomplicado, os funcionários empoderados da Mercur pensaram: “Não seria o caso de termos produtores locais plantando mamona? Assim, eles poderiam deixar de plantar tabaco”. Santa Cruz do Sul é conhecida como a capital nacional do fumo, onde a cultura do tabaco responde por cerca de 80% da economia local. “Contatamos o Movimento dos Pequenos Agricultores e perguntamos se plantariam mamona. Então, pedimos à Universidade de Santa Cruz do Sul que desenvolvesse um óleo de mamona adequado a nosso consumo industrial, que é o que está acontecendo agora. Nessa cadeia de valor, a Mercur entrará como compradora”, conta Jorge Neto. 

> **Caso Mercur veio à tona em pesquisa**
>
> Vicente Gomes e Mauricio Goldstein, sócios da Corall Consultoria e cofundadores do movimento Capitalismo Consciente Brasil, estão investigando motivações e práticas da nova geração de executivos e empresas do País que se importam com questões além das econômicas, como a sobrevivência do planeta e a desigualdade social, e o traduzem no cotidiano de seus negócios. Segundo eles, são esses atores que estão formatando, discreta, mas verdadeiramente, “uma nova economia”. Gomes e Goldstein acabam de lançar dois livros com essa pesquisa. O de Gomes se concentra nos executivos –Liderança para uma Nova Economia– e inclui o caso de Jorge Hoelzel Neto que ele desenvolve neste artigo; o de Goldstein foca as empresas –Novas Organizações para uma Nova Economia. Os autores são engenheiros de formação, respectivamente pelo ITA e pela Escola Politécnica. 

> **Propósitos, cultura e organização**
>
> **Propósitos**
>
> • O propósito maior da empresa é para com a Terra e a sociedade. 
>
> • O sucesso tem várias dimensões e atende múltiplos stakeholders. 
>
> • Há metas claras de diminuição de insumos não sustentáveis. 
>
> • Criamos novos modelos de negócio para maximização da ocupação e renda de trabalhadores. 
>
> • Respeitamos todas as formas de vida. 
>
> **Ênfases culturais**
>
> • Cuidado das pessoas como estratégia de sustentabilidade. 
>
> • Valorização da vida. 
>
> • Compaixão e atuação ética. 
>
> • Diálogo como instrumento de coordenação.
>
> • Respeito e tolerância. 
>
> • Autonomia e protagonismo. 
>
> **Mudanças organizacionais**
>
> • Redução drástica da hierarquia. 
>
> • Escolha de setores de atuação e parceiros conscientemente coerente com o propósito. 
>
> • Colegiados organizados por setores da empresa e facilitadores corresponsáveis. 
>
> • Diminuição da diferença entre o maior e o menor salário na empresa. 
>
> • Incentivo variável coletivo baseado no resultado global da empresa. 
>
> • Cadeia de valor sustentável. 
>
> • Marketing consciente. 
>
> • Uso de materiais naturais e sustentáveis.

**MEDIDAS PARA REDUZIR O FOSSO SALARIAL**

A avaliação do desempenho dos funcionários começa a amadurecer na Mercur, mas, enquanto não fica pronta, outras medidas estão sendo tomadas para que, até o final de 2014, a diferença tenha diminuído 10%. Foram criadas faixas salariais e, a cada data-base, as camadas mais baixas recebem reajustes maiores. Também se estruturou a participação nos lucros, que pode render até um salário e meio a mais por ano. 

Ainda foi proposto um programa intensivo de promoções: a Mercur hoje praticamente só recruta novos funcionários para o chão de fábrica; as demais posições são preenchidas por talentos internos. Outro ponto enfatizado pela Mercur é que não se planejam demissões na empresa. “O que estamos montando é para todos nós; se fizermos direito, o benefício voltará para todos”, explica Jorge Neto. Escolha dos clientes conforme os propósitos Imagine-se rejeitando clientes não porque não sejam lucrativos, mas porque não são adequados aos propósitos da empresa. A mudança da Mercur já chegou a esse ponto. 

Ela vem revendo os contratos e, quando julga necessário, descontinua linhas de produtos que não correspondem aos novos anseios, diminuindo a receita. Um episódio marcante da nova fase ocorreu ainda em 2009, após a “virada de chave”. Havia alguns anos, a Mercur vinha pesquisando a fabricação de uma nova esteira de material atóxico para linhas de produção, alternativa à esteira de PVC, por encomenda de um cliente da indústria do tabaco que havia sido advertido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

Formulação pronta, mercados promissores abrindo-se no horizonte, a Mercur refletiu: “Esse lucro que financiaria nosso bem-estar particular viria do mesmo fumo que provoca câncer”. A empresa procurou o cliente e avisou: não produziria a esteira. “Precisamos explicar muitas vezes que agíamos em favor das pessoas, mas acho que o pessoal da indústria do tabaco entendeu”, diz Jorge Neto. 

Meses depois, surgiu outra situação de tradeoff. Uma montadora, depois de vencer licitação para a venda de veículos para a Organização das Nações Unidas (ONU), procurou a Mercur para produzir uma peça que deveria servir de apoio para atiradores. Um funcionário do chão de fábrica questionou a finalidade da produção e a encomenda não foi fechada. 

O leitor pode argumentar que, tanto no caso da esteira como no da peça para o veículo, tratava-se de receita não realizada, algo de que, em teoria, é mais fácil abrir mão. Difícil mesmo seria renunciar a ganhos correntes e polpudos, não? Mas a Mercur fez isso também. Ela licenciava produtos com personagens adorados pelas crianças, como Barbie e Moranguinho, e seus funcionários se deram conta de que não fazia sentido a mesma borracha escolar custar o dobro só porque tinha a imagem da Barbie. “Nós nos perguntamos: queremos conviver com isso?” A reflexão coletiva resultou na ruptura dos licenciamentos –e, aí, sim, em uma queda de receitas. 

> **Conversa com Jorge Neto, conselheiro Dam**
>
> **Houve momentos em que vocês pensaram em desistir das mudanças?** Nunca pensamos em desistir, mas em várias ocasiões precisamos fazer ajustes de velocidade, porque entendemos que cada pessoa tem seu tempo. Se quisermos andar todos juntos, o que é fundamental em nosso propósito, precisamos nos adequar a essas velocidades. Além disso, quem atua em função de seus propósitos, sem o oportunismo das situações momentâneas, dificilmente conseguirá mudar de rumo ou voltar as costas para aquilo em que acredita. 
>
> **A mudança acabará ou é contínua?** Operar com paradigmas que valorizam a vida acima de qualquer outra oportunidade situacional é um processo contínuo de evolução sem data para terminar nem objetivo a atingir. 
>
> **O que fornecedores e clientes pensam dessa mudança?** Os parceiros vão se engajando à medida que seus propósitos se encontram com os nossos. E é isso mesmo o que queremos: atuar com parceiros cujos propósitos se identifiquem com os nossos, sem que eles abram mão de sua identidade. 
>
> **Como a mudança avança este ano?** Estamos na fase de experimentações, trabalhando em muitos projetos “incubados”. Em 2014, estamos criando um laboratório de inovação social, que terá um espaço físico aqui na sede da empresa, mas também vai fazer atividades itinerantes. Seguimos fortalecendo nossa teia de aprendizados por meio de muito relacionamento. 

**NÚMEROS E FUTURO**

A transformação da Mercur teve início em um tempo de grande prosperidade financeira –os anos 2010 e 2011 foram ótimos para a companhia. No entanto, a lucratividade da empresa finalmente começou a ser afetada pelas medidas tomadas e, no final de 2012, ela foi obrigada a se perguntar: “Se já não entra tanto, o que pode deixar de sair?”. Cortaram-se, por exemplo, investimentos em áreas que parecem não mais fazer sentido no novo modo de operação, como as dispendiosas feiras de papelaria em grandes centros. É uma prova de fogo, mas o discurso do CEO Jorge Neto é de confiança no futuro, amparado pela certeza de estar investindo no que será a economia do futuro. Como ela será? Ainda não se sabe ao certo, mas vai basear-se em relacionamento, inovação, uso eficiente de recursos e sustentabilidade.

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