Estratégia e Execução

Neurociência para todos

Da gestão de pessoas, passando pela área de vendas, e chegando até as escolas, parece não haver limites para a aplicação dos conhecimentos neurocientíficos

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Nem só de eletrodos, amostras de saliva ou tecnologia de eye tracking vive a neurociência aplicada. Pela apuração feita por HSM Management, a maioria das empresas que investe em projetos nessa área o faz sem experimentos em laboratório ou qualquer comprovação científica de seus resultados. 

Como aconteceu com a Sodexo, que recorreu a um projeto de neurogestão. A área de recursos humanos percebeu que os líderes sabiam fazer o trabalho de gestão de equipes, mas, por algum motivo, os indicadores não sinalizavam isso. 

“Nossa hipótese era de que, se explicássemos conceitos básicos sobre o funcionamento do cérebro e suas implicações na construção e gestão de times de alta performance, traríamos a liderança para o nível de consciência que precisávamos”, conta Monica Torquato, gerente de desenvolvimento organizacional da Sodexo. 

Para ajudá-la nessa missão, a Sodexo contratou a consultora Ines Cozzo, que há 34 anos se dedica aos estudos da neurociência aplicada aos negócios. A proposta era que, nesse treinamento, tudo fosse diferente: a começar pelo local. “Achei que o GPS tinha me levado ao lugar errado. Eu esperava uma sala de hotel ou esses espaços de treinamentos bem comuns em São Paulo. Mas era uma casa, muito aconchegante, com poucas pessoas e um clima bem intimista”, conta André Gaiofato, diretor comercial.

De acordo com Torquato, a reação geral foi muito positiva. Além de conceitos básicos da neurociência, os líderes vivenciavam na prática experiências inspiradas nesses conhecimentos: “A casa em que ministramos os treinamentos, por exemplo, foi construída com base no que já se conhece sobre a neuroarquitetura. Sabe-se, por exemplo, que locais com pé direito mais alto, luz natural em abundância, materiais orgânicos, entre outros elementos da natureza, fazem o ser humano se sentir mais seguro, relaxado e, portanto, mais aberto a novas ideias”, explica Cozzo.

Outros elementos, como a escolha do cardápio (cafés e almoço) com base nos conhecimentos da neurogastronomia e o preparo do material, baseado na neurocomunicação, complementavam a experiência do treinamento. 

De agosto de 2018 a junho de 2019, foram treinadas 12 turmas, formadas com a maior diversidade de pessoas possível, totalizando 110 líderes, que representam 97% dos executivos em cargos de gestão. Os 3% restantes são novos líderes e, assim que houver número suficiente para formar uma nova turma, eles também passarão pelo treinamento.

Andréa Sola, gerente comercial PME, conta que sua equipe não conseguia entregar resultado há algum tempo. Depois de passar pelo treinamento, veio a mudança. Ao bater a meta pela primeira vez, ela instituiu um importante ritual de celebração, com direito até a espumante. “Este é o sétimo mês consecutivo que estamos entregando resultado. Dá para perceber que tem a ver com a neurociência: o comportamento regular e a sensação de prazer levam ao objetivo”, avalia ela. 

E quais os desafios encontrados pelo RH? “Por mais que tenhamos colocado cases e exercícios, cada um é impactado de uma forma. Como são pessoas, é difícil mensurar o que cada um coloca em prática no dia a dia e em sua equipe, já que o que esperamos é um efeito cascata”, diz Torquato.

Apesar de o treinamento ainda ser recente, algumas queixas já foram minimizadas. “Acredito que vamos colher frutos ao longo do tempo, principalmente medindo o clima organizacional, por meio de pesquisas, como a de engajamento, e que deve refletir também em uma melhor posição da Sodexo nas Melhores Empresas para Trabalhar (GPTW)”, conclui a gerente de desenvolvimento organizacional.

Questionada sobre a dificuldade de se medir resultados em cases como o da Sodexo, Cozzo dispara: “Muitas vezes há um excesso de cientificismo nesta área, em que muitos neurocientistas acreditam que se você não souber como é a molécula da serotonina você não está ensinando direito a neurociência. Mas há também um outro lado, que é muito mais assustador: não basta ler meia dúzia de livros, montar um Power Point bonito, e sair por aí dizendo que é especialista no tema”. Isso porque, segundo a especialista, usar os conhecimentos neurocientíficos para a resolução de problemas nas empresas exige anos de estudo e especialização.

“Há uma parcela de neurocientistas que são da neurociência pura, que sabem tudo sobre o sistema nervoso e reações fisiológicas, porém com pouco conhecimento do mercado. Por sua vez, há pessoas que estão aprendendo sobre neurociência para aplicar no mercado, porém ou não são da neurociência aplicada ou não têm acesso à aplicação – elas replicam aqueles conceitos. Isso porque é tudo muito novo e ainda estamos evoluindo. Acredito que, muito em breve, o caminho natural para quem trabalha nessa área será investir em equipes multidisciplinares, como já fazemos por aqui”, comenta Leandro Mattos, sócio da CogniSigns, empresa que possui uma plataforma de diagnóstico de autismo baseada em conhecimentos neurocientíficos.

**NOVARTIS: NEUROVENDAS PARA AMPLIAR A VISÃO DOS CONSULTORES TÉCNICOS**

Como um consultor técnico da indústria farmacêutica Novartis poderia ter mais sucesso do que tantos outros que fazem visitas aos médicos, num encontro que geralmente não dura mais que 15 minutos? Foi por meio da neurociência com foco em vendas que a equipe de treinamento da Novartis encontrou um caminho para se diferenciar.

“Nosso time de consultores têm o conhecimento técnico e do negócio, e decidimos mostrar a eles a ciência que está por trás da jornada emocional na tomada de decisão do cliente”, conta Patrícia Faggion, gerente de treinamento da empresa, responsável pela equipe da hematologia, formada por 27 consultores.

A Novartis, que está entre as dez melhores empresas para trabalhar pelo GPTW e conta com 2,5 mil colaboradores no Brasil, busca maneiras diferenciadas de capacitação e entende que o conhecimento sobre o processo emocional da venda pode contribuir com a formação de seus profissionais e reforçar ainda mais a missão de melhorar e estender a vida dos pacientes.

“O enfoque do treinamento, dado por Carla Tieppo, foi o de abordar aspectos da jornada emocional, como a memória, a relação entre razão e emoção, ou seja, como o cérebro funciona na tomada de decisão e, consequentemente, sua importância no processo da venda”, detalha Faggion.

Durante a convenção de vendas, em julho último, foi plantada a semente com um treinamento de uma hora sobre neurociências, para ativar o conhecimento. No próximo ano, a força de vendas terá mais treinamentos relacionados a comportamentos que impactam positivamente o processo promocional das marcas, e o tema neurociências terá ainda mais espaço e profundidade. 

Um desafio do treinamento em si foi quebrar um paradigma no item emoção x razão, como lembra Faggion. Para o time, “emoção remetia a amizade, a criar vínculos afetivos, mas o que se pretende é ensinar como acessar o emocional”, neste caso, dos médicos.

A consultora Carla Hainzenreder, que atua no Rio Grande do Sul, achou interessante entender que as decisões de compra não estão vinculadas mais ao lado racional do cérebro, mas que o domínio é do hipotálamo, onde está toda a estrutura emocional: percepção, memória e interação social. “Assim aprendi que para mobilizar, influenciar e inspirar uma pessoa, tem de ser por meio da emoção”, diz ela.

Para Hainzenreder, os conceitos aprendidos puderam ser aplicados imediatamente, tanto na interação com os médicos, quanto na vida pessoal. “O desafio nesta profissão é o tempo disponível na frente do médico”, conta, e no treinamento ficou claro que é preciso criar estratégias para chamar a atenção do ouvinte logo de início e pelo lado da emoção.

**RI HAPPY: NEUROGASTRONOMIA PARA ENGAJAR LÍDERES NAS MUDANÇAS**

A crise econômica e política de 2016 gerou uma mudança de hábito do consumidor no segmento de brinquedos, e o Grupo Ri Happy precisou reformular seus processos, principalmente de estrutura organizacional, remuneração e benefícios para lidar com esse novo momento.

Elisabete Strina, diretora de recursos humanos do grupo, conta que o grande desafio era fazer algo, sem perder a essência da empresa, que foi criada em 1988 pelo pediatra Ricardo Sayon. Essência essa baseada num conceito afetivo, mantendo seu princípio de “gente”, respeitando seus colaboradores, que foi mantida quando o fundo de private equity americano Carlyle adquiriu 85% do grupo, hoje com 277 lojas Ri Happy e PBKids.

“Nós sabíamos o que fazer, mas era complexo porque envolvia mudanças em temas sensíveis”, conta Strina. Entre elas, uma mudança no modelo de remuneração dos vendedores, que também impactaria as gerências e o pagamento de bônus. 

“O principal desafio era mostrar aos 4 mil colaboradores de loja que, do jeito que estava, a operação não se sustentava. E o nosso desejo era que eles pudessem ver que os novos modelos de remuneração incentivariam as vendas, fazendo com que todos ganhassem”, complementa Strina. 

Quando procuraram a consultora Ines Cozzo, já não havia mais tempo para treinar as lideranças como foi feito na Sodexo. “Decidimos então estruturar uma experiência em um evento para os gerentes, em que a neurogastronomia seria nossa principal aliada”, conta Cozzo. 

Jucilene Barbosa, gerente regional, conta que aprendeu com a neurogastronomia que é preciso estar aberto ao novo, que a pessoa deve se permitir experimentar, sentir a situação para, então, ir adiante da melhor maneira possível. “Rendeu aprendizados que uso até hoje”, conta ela.

Strina diz que os resultados do projeto de mudança foram positivos. Cerca de 93% dos vendedores aderiram ao novo formato de trabalho.  Esse alto engajamento impactou a organização, que teve crescimento de 30% na meta de Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização) em relação ao ano anterior, o que gerou pagamento de participação de resultados aos colaboradores.

**NEUROEDUCAÇÃO NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL**

Neurocientista e consultora organizacional, Carla Tieppo é uma grande entusiasta da educação. Além de coordenar cursos na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Tieppo desenvolveu um projeto chamado Educação Inédita, que visa formar professores em neurociência aplicada. Como também atua no mercado organizacional, batemos um papo com a especialista sobre os desafios das áreas de treinamento e desenvolvimento da empresa no que tange ao aprendizado. Confira a seguir: 

**Segundo as neurociências, como o ser humano aprende?**

Uma das descobertas mais importantes sobre o funcionamento cerebral é que a gente tem dois sistemas de produção de aprendizado. O chamado “sistema das memórias declarativas” é aquilo que eu sei que eu sei. Então, se você me perguntar sobre a semântica, o significado das palavras, a minha memória autobiográfica, eu faço narrativas sobre tudo isso. Ou até mesmo se você me perguntar sobre um processo da organização ou sobre princípios de cultura, eu posso até saber, mas isso não obrigatoriamente significa que eu uso esse conhecimento no meu dia a dia. O mais importante para que a gente desenvolva competência nas pessoas é a compreensão de que eu tenho que desenvolver uma outra forma de memória, que é a chamada “memória procedural”, a memória de procedimento, daquilo que eu faço. 

**Consegue nos dar um exemplo no contexto das empresas?**

Quando um treinamento é ministrado e o consultor diz “o líder precisa ser resiliente, ter empatia etc.”, isso não resolve nada. A pessoa pode até saber que um bom líder deve ser empático, porque ela carrega essa informação em sua memória declarativa. Mas a questão é: como ela faz isso acontecer na hora que a demanda aparece na frente dela? Na hora que ela precisa ser empática? Como ela lança mão dessa competência? E é aí que entram as estratégias de desenvolvimento de memória procedural. 

**O que são estas estratégias?**

Para facilitar, usamos o acrônimo GET: Gols, Erros e Treinamento. Trabalhamos com a intencionalidade do indivíduo, que está diretamente associada aos objetivos que ele quer alcançar. Pensamos no aprendizado baseado na detecção de erros, em que o erro seja efetivamente uma estratégia de aprendizado e, por fim, deixamos o indivíduo praticar até que ele perceba que está tendo melhora de desempenho, com um processo inclusive de pós-treinamento, em que ele consiga avaliar os ganhos obtidos.

**Quais os principais erros cometidos pelas empresas?**

As empresas exploram pouco as jornadas emocionais, que é criar no indivíduo um engajamento com aquele aprendizado, mostrando que, ao usar aquele aprendizado, ele resolve problemas dele, alivia necessidades. Há uma ênfase excessiva em pautas que melhoram o desempenho dele para a empresa, mas sem focar o indivíduo, os ganhos que ele tem, e aí o indivíduo aprende menos nessas condições. Outra coisa que a gente vê acontecer é o excesso de conteúdo, muitos dias e muitas horas de treinamento ininterruptos. Nesses casos, a jornada emocional é ruim, as pessoas ficam desengajadas. Uma boa alternativa é investir em microlearning.

**Por que o microlearning é mais efetivo?**

Porque basicamente você tem uma capacidade de construção de novos circuitos de um dia para o outro. Essa capacidade está limitada pela potência das suas estruturas cerebrais que vão formar esses novos circuitos, especialmente o hipocampo. O hipocampo tem um limite de funcionamento, então se você criar muito conteúdo, na verdade você acaba atrapalhando o aprendizado daquilo que é mais importante. Quando você foca algo, e vai repetindo de diferentes formas, a mensagem que chega para o cérebro é “Isso você precisa aprender”. Quando a pessoa vai dormir, o cérebro sabe que aquele circuito é importante e o preserva. À noite, o cérebro escolhe o que ele vai manter e o que ele vai esquecer e, se você der muitos estímulos, ele fica confuso em relação ao que é importante.

**NEUROEDUCAÇÃO: COLÉGIOS NA VANGUARDA DO ENSINO**

A aplicabilidade das diversas facetas da neurociência é ampla, e não tem atraído somente a atenção do mercado corporativo. É também um casamento perfeito com o sistema educacional. Algumas escolas já recorreram à neurociência para amplificar suas propostas de ensino.

O Colégio Sidarta, localizado em Cotia (SP), foi fundado 21 anos atrás por uma holding chinesa, que propõe uma educação pautada em princípios e não em metodologia. Desde o início, as crianças têm aulas de mandarim. Segundo Claudia Siqueira, diretora pedagógica do colégio, o mandarim aciona uma parte do cérebro e ajuda no desenvolvimento; por sua vez, a área cerebral é podada se não for usada por um longo período. “Então, aqui sempre discutimos neurociência”, diz ela.

No ano passado, com base na neurociência, o Sidarta decidiu fazer cortes diferentes na trajetória escolar dos alunos, baseado no desenvolvimento das áreas cerebrais das crianças e dos adolescentes. Definiu então seu ensino em três ciclos: O primeiro é o momento do “despertar do ser”, que vai do G3 (crianças de três anos) até o 3º ano do Fundamental I. O segundo vai do 4º ao 7º ano, quando se desenvolvem outras áreas cerebrais, tais como as de abstração e tridimensionalidade. O último ciclo compreende do 8º ano do Fundamental II ao 3º do Ensino Médio. “É o período de expansão, quando ocorre o refinamento da utilização da aprendizagem em sociedade”, explica Siqueira.

Para dar suporte à proposta de alteração, todos os 80 professores dos três ciclos fizeram curso de neurociência básica, capitaneado por Carla Tieppo, durante uma semana e carga horária de oito horas por dia, para que entendessem o que se passava no cérebro e as mudanças de acordo com as fases de maturidade.

Já para o Colégio Albert Sabin, o tema da neurociência chegou com força este ano. Há projetos voltados tanto aos professores, como a alunos do Ensino Médio (EM). 

Uma equipe de 42 professores está fazendo, desde abril, especialização em neurociência aplicada à educação, pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e coordenação de Tieppo. Com duração de dois anos, o formato é in company, exceto as aulas de anatomia que ocorrem na faculdade. 

“O objetivo é qualificar nossos professores com práticas docentes eficientes, corroboradas pelas pesquisas mais recentes, e incentivar a formação contínua de nossa equipe”, afirma Giselle Magnossão, diretora pedagógica do Albert Sabin.

O colégio tem ainda um ganho secundário com a iniciativa, já que os professores estão desenvolvendo suas pesquisas para o TCC na própria escola. Os temas são os mais diversos, como criatividade, afeto, rotinas do pensamento, entre outros.

Para os alunos do EM, foram oferecidas duas palestras, a primeira sobre práticas de estudo, a partir das descobertas da neurociência. A segunda, segundo Áurea de Souza Bazzi, coordenadora pedagógica do EM, abordou assuntos como vícios – seja do consumo de drogas, seja de uso excessivo de mídias – e a importância do sono para o aprendizado. 

“Nossos alunos têm um perfil diferenciado e se envolvem nas discussões quando embasadas em dados científicos”, conta Bazzi. Ela diz que “há um pedido de socorro”, principalmente entre os alunos do 3º ano, na faixa dos 17 anos de idade. Para eles, chega quase a ser um alento saber que um comportamento ou um hábito, que sabem não ser saudável, é resultado de um algoritmo bioquímico e que existem instrumentos para ter autocontrole. 

Ter conhecimento em neurociência focada na educação deve causar impacto em uma melhor qualidade de aprendizado e dar um salto na relação professor-aluno. A ideia, segundo Siqueira, do Sidarta, é dar o exemplo. “O desafio agora é como viabilizar isso para escalar no Brasil, porque existem pesquisas que o princípio da neurociência vai beneficiar os educadores de escolas públicas; e podemos dar um salto no sistema educacional brasileiro”, conclui a diretora.

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