Saúde Mental

O adoecimento mental nas empresas

Em entrevista exclusiva, o médico do trabalho André Fusco fala sobre como a cultura corporativa pode contribuir para síndromes e transtornos mentais dos trabalhadores
Angela Miguel é editora de conteúdos customizados na Qura Editora para as revistas HSM Management e MIT Sloan Management Review Brasil.

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Número um na América Latina e número dois nas Américas: esse é o posto do Brasil quando falamos de depressão, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Quando o tema é ansiedade, somos líderes no mundo. Porém, levar o tema para dentro das empresas ainda é tabu, embora o assunto trabalho tenha peso considerável para muitos que sofrem com essas enfermidades.

Foi a partir da faculdade de medicina e da observação do universo corporativo que André Fusco, médico do trabalho formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), mergulhou nas causas do adoecimento mental nas empresas, atividade que realiza desde 2016 por meio da psicodinâmica do trabalho. Segundo ele, não falar sobre saúde mental é um mecanismo de defesa psíquico e que pode ser entendido por três vertentes:

– O ser humano não pode admitir que está sofrendo, senão o sofrimento será maior;

– O problema não está nas pessoas, mas nas regras do mundo corporativo, que exigem resultados e cumprimento de metas;

– A falta de reconhecimento.

Em entrevista a **HSM Management**, Fusco fala sobre como o modelo das organizações colabora para o adoecimento mental do trabalhador e dá pistas para aqueles que desejam mudar as estatísticas dentro das empresas. Confira!

**HSM Management: A partir da sua experiência como médico do trabalho, por que entende que uma parte do adoecimento mental presente nas empresas está nas regras estabelecidas pelo mercado corporativo? **

**André Fusco:** Hoje, costumamos dizer que [o trabalho tem que ser colaborativo](https://www.revistahsm.com.br/post/saude-mental-tambem-pode-ser-uma-meta-corporativa), pois o mundo é colaborativo, e a diversidade de potenciais e aptidões farão com que o time seja ótimo. Porém, a empresa estabelece metas individuais, faz ranking para premiar os colaboradores, você coloca mais luz na diferenciação das pessoas e estimula a competição. Uma pessoa que está competindo com a outra não compartilha, não colabora. São várias as empresas que têm o discurso da colaboração e uma regra de competição. Por exemplo, se o colaborador tem uma meta de vendas com uma remuneração variável e a empresa diz “foco no cliente”, o trabalhador não vai focar no cliente, vai focar no resultado, pois o valor está na venda. Isso significa que muito do discurso do mundo corporativo é uma contradição entre a percepção de que a gente precisa gerar valor e a necessidade de trazer resultados. E, no fim, culpamos sempre as pessoas, nunca as regras.

**HSM Management: Quais são os males que a busca pelo resultado, sem reflexão sobre o valor, pode causar?**

**André Fusco:** Eu pergunto para alguns executivos para quê serve uma empresa e eles respondem “para gerar lucro”. Porém, eu respondo que as [empresas servem para gerar valor](https://www.revistahsm.com.br/post/coloque-sua-empresa-no-diva). A contrapartida, a consequência, é o lucro. Um lucro, sem esse valor gerado, é o mal do mundo do trabalho hoje. Quando levantamos esse assunto, é normal ouvir “sempre foi assim, né?” ou “a vida não é fácil”. Mas esse é um processo de defesa, a gente aceita e tolera, mas isso se torna um sofrimento inconsciente. E quando temos esse sofrimento inconsciente, começamos a compensar. E quais são as formas de compensar? Remuneração, por exemplo.

**HSM Management: Falando em compensação, quais são os outros tipos feitos pelas empresas e quais são as compensações que nós mesmos buscamos na tentativa de estancar esse sofrimento inconsciente?**

**André Fusco:** A gente começa a tentar aumentar nossa tolerância. Por exemplo, mindfulness, treino de resiliência. Empresas pensam que resolver o problema é criar uma sala de descompressão, mas ninguém avalia as causas que levam a alguém precisar da sala. Às vezes, o convívio com a família é uma compensação, mas quando a compensação não é mais suficiente, a pessoa adoece. O sofrimento mental no mundo corporativo é uma grande oportunidade, pois quem tiver maturidade para abordar isso de frente e entender que não há culpado, vai ter um diferencial muito grande. Na defesa psíquica, quando alguém adoece na sua frente, a primeira coisa que fazemos é falar: “eu não estou adoecendo, ele está doente porque bebe demais, não se cuida, brigou com a família”. Você considera todos os contextos, inclusive a compensação, mas nada se relaciona ao trabalho, porque “trabalho é trabalho”.

**HSM Management: E como fica essa situação para o líder?**

**André Fusco:** Quanto mais alto o nível hierárquico, além desse medo do adoecimento próprio, há um sentimento de culpa relacionado a responsabilidade por esse adoecimento em membros de sua equipe. Quando você vê reuniões de executivos discutindo desligamentos, são sempre os números levados em conta, porque se cada número virar uma pessoa, a tarefa se torna insuportável. E, em última análise, os presidentes estão tentando trazer resultados, senão o mercado os penaliza.

**HSM Management: Ainda sobre o líder, como ele pode fazer uma gestão individualizada, compreendendo a complexidade de cada indivíduo, mas de forma escalável? É possível encontrar um equilíbrio?**

**André Fusco:** Essa é uma pergunta complexa. Não tem uma bala de prata ou uma solução padronizada. Um dos grandes erros é importar modelos de outras empresas, mas não conversar com quem está dentro de casa, com que vive o que chamamos de “o real do trabalho”. É necessário entender a complexidade de uma empresa a partir das pessoas, e a partir das pessoas entender quais são as regras que servem ao valor e ao [propósito que uma organização quer exprimir](https://www.revistahsm.com.br/post/conectando-proposito-e-estrategia). Portanto, devemos olhar para as pessoas, mas mexer nas regras. Quando as regras são coerentes, a coisa flui. Em seguida, é preciso analisar as contradições. Eu quero colaboração ou competição? Eu quero trazer resultado ou quero gerar valor? Eu quero que as pessoas sejam motivadas a fazer algo ou eu dou um estímulo oposto e puno quem faz o que não quero? É muito comum companhias criarem “a regra da regra” e punições que não chegam na origem dos comportamentos, estes, muitas vezes, estimulados pela própria instituição, o que é muito contraditório por si só.

**HSM Management: A respeito do terceiro macroproblema apontado, quão importante é o reconhecimento pelo trabalho exercido? Qual seu impacto na saúde mental nas empresas?**

**André Fusco:** Existem alguns aspectos necessários para o trabalho ser saudável mentalmente. Primeiro: preciso fazer um trabalho que gere valor, eu preciso ter propósito no meu trabalho. Segundo: preciso perceber o meu desenvolvimento, a minha aprendizagem, a minha evolução no trabalho como profissional. Terceiro: preciso ser reconhecido por essas duas coisas. Quando sou reconhecido, deve ser não só pelo resultado, que é o que as empresas fazem, mas também pelo meu esforço e pela minha evolução.

Confira mais artigos sobre o tema no [Fórum Saúde Mental nas Empresas](https://www.revistahsm.com.br/forum/saude-mental-nas-empresas).

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