Estratégia e Execução

Por mais líderes mulheres na cadeia de suprimento

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O enredo era sempre o mesmo, o que mudava era o endereço. Não foi uma, nem duas, mas dezenas de vezes que as empresárias Denise Amado e Sandra Sciacca, donas da Discover Eventos, agência especializada em viagens de incentivo e eventos corporativos, chegaram à reta final de concorrências como as únicas mulheres na mesa de negociação. Na maioria das vezes, tinham como interlocutor um executivo, dificilmente uma mulher. “Uma das situações mais marcantes aconteceu na sede de uma gigante japonesa do ramo de eletroeletrônicos”, lembra Denise. “Fizemos a apresentação, sabíamos que tínhamos a melhor proposta, mas, mesmo assim, a resposta não vinha.” 

Cansada de esperar, a empresária resolveu tirar a dúvida. A resposta foi ao mesmo tempo surpreendente e reveladora: “A companhia tem uma cultura muito conservadora. Embora vocês tenham apresentado um bom projeto, com valores dentro da média dos demais, a opção foi por uma empresa que tem um homem na liderança”, disse o executivo.

“É duro você ouvir que o seu projeto é melhor, mas mesmo assim você não foi selecionada, pois a escolha recaiu em uma proposta inferior pelo simples fato de ter um homem à frente do negócio. No olhar deles, nós, como mulheres empresárias, não conseguiríamos nos impor em uma organização composta por 99% de homens”, afirma Amado. “Isso ocorreu há sete anos, de lá para cá houve um certo avanço, mas bem aquém do ideal.” Com 17 anos de operação e 45 clientes ativos na carteira, a Discover virou referência na área, acumula premiações e se impõe, segundo as sócias, pela expertise acumulada ao longo de quase duas décadas.

Denise Amado tem razão ao afirmar que as mudanças ainda são muito poucas diante do tamanho das oportunidades do mercado. Pesquisa conduzida pela American Express em 2017 revelou que o número de empresas nos Estados Unidos com controle majoritariamente feminino cresceu 114% nas duas últimas décadas. No Brasil, aproximadamente 50% dos novos negócios são liderados por mulheres. Apesar disso, a participação dessas empresas nas cadeias de suprimentos das grandes corporações ainda é limitada. “Apenas 1% do que é gasto com compras empresariais está ligado a empreendimentos liderados por mulheres”, destaca Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil. “É muito pouco.”

Vários são os motivos que levam a essa realidade, alguns de ordem econômica, outros culturais. Para mitigar riscos, as grandes organizações aumentaram significativamente seus protocolos para desenvolvimento de novos fornecedores, incluindo certificações de qualidade e demandas por resiliência financeira. É sabido, contudo, que boa parte das empresas fundadas por mulheres são de pequeno e médio porte, o que dificulta a obtenção de crédito e financiamento. Estudos revelam, ainda, barreiras culturais, por conta da alta presença de homens em postos de tomada de decisão. Muitas vezes, até inconscientemente, eles tendem a preferir comprar de empresas lideradas por pessoas do sexo masculino. 

Na visão de Ana Leão, manager director da Isobar, empresa global de marketing digital, não basta ter mulheres na empresa, é preciso ter mulheres na liderança e dentro das próprias corporações. “Se você não tem mulheres em postos de tomada de decisão dentro de casa, se não prega a diversidade, como pode buscar esse modelo em seus fornecedores?”, questiona. Segundo ela, quem tem portfólio voltado ao público feminino costuma ter uma carteira mais recheada de empresas fundadas por mulheres. As próprias mulheres, quando começam a empreender, acabam optando por segmentos de maior familiaridade, como beleza, alimentação e moda.

**REALIDADE REGIONAL**

A opinião é compartilhada por Ana Lúcia Fontes, presidente do Instituto Rede Mulher Empreendedora. “A maioria dos negócios fundados por mulheres é de pequeno e médio porte no País, voltados às áreas de comércio e serviço, que exigem menor investimento e estão mais ligados ao ambiente de conforto feminino”, afirma. “Por serem pequenos, têm mais dificuldade para captar dinheiro no mercado e, na maioria das vezes, sequer são cogitados para a mesa de negociação de novos fornecedores.” Essa realidade não é exclusividade brasileira, pelo contrário, trata-se de um cenário comum na América Latina.

Dados levantados pelo Projeto Global Hear Her Voice, capitaneado pelo grupo Dentsu Aegis Network, que reuniu 1.000 mulheres, entre 18 e 54 anos, do Brasil, México, Colômbia e Argentina, revelaram que apesar das boas perspectivas do empreendedorismo feminino na América Latina e de muitas mulheres já prosperarem com seus próprios negócios, ainda falta muito para o mercado atingir a maturidade. Para mais de 30% das brasileiras e colombianas, as vendas representam sua principal fonte de renda. Na Argentina e no México, porém, o índice cai pela metade, apontando a dificuldade que elas têm para obter lucro com a operação. Segundo o estudo, cosméticos e cuidados pessoais são os setores-chave para mulheres donas de negócios na região. “O mercado floresce, mas elas ainda restringem sua atuação a segmentos tradicionalmente ligados ao universo feminino. Os números mostram que sobra espaço para as latino-americanas diversificarem sua área de atuação. As oportunidades serão inúmeras se elas entrarem em negócios que não estão diretamente relacionados ao microcosmo feminino”, diz a conclusão do trabalho.

A empresária Beatriz Cricci, fundadora da BR Goods, referência em divisórias de leitos hospitalares, fugiu à regra. Em 2000, depois de acumular experiência como executiva de uma empresa portuária, ela começou o próprio negócio quase que por acaso. Convenceu o pai a não colocar box de vidro nos banheiros da casa de praia da família em Jericoacoara. Foi ao mercado em busca de cortinas e percebeu que ou eram sem graça ou caras demais. Colocou a mão na massa e criou os próprios modelos. Os amigos gostaram e as encomendas começaram a surgir. Com um bom produto na mão, passou literalmente 10 vezes na porta de uma loja especializada na Rua dos Pinheiros, em São Paulo. “Eu tinha medo de oferecer as minhas cortinas e ouvir um sonoro não”, lembra Cricci. Ao contrário do que imaginara, o produto foi aceito e abriu porta para a participação na feira Equipotel, uma das maiores do segmento hoteleiro. A carteira de clientes ganhou nomes de peso, como Sheraton, Copacabana Palace, Club Med, Sauípe, Blue Tree.

Foi numa edição da Equipotel, também, que fez contato com o Hospital Albert Einstein, que buscava fornecedores para cortinas divisórias de leitos. “É um mercado complexo, que pede muitos atributos e certificações”, afirma a empresária, que correu atrás de diferenciais. As cortinas da BR Goods contam com nanotecnologia no polímero do fio, importado da Alemanha; são retardantes de chamas; têm propriedades antifungos, antimicrobiana, características que não perdem efeito com as lavagens e são atestadas por laudos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). “Viramos referência no setor”, diz Cricci, que está presente na lista de fornecedores de mais de 1,4 mil hospitais, além da rede hoteleira. 

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**EM BUSCA DE MUDANÇAS**

Um dos grandes desafios para mudar esse cenário e promover a inclusão da diversidade na cadeia de supply chain está na capacitação das pequenas e médias empresas, que compõem o grande universo do empreendedorismo feminino. “Os gargalos são muitos”, admite Ana Fontes. De acordo com a terceira edição da pesquisa Empreendedoras e seus Negócios, realizada em 2018, nada menos do que 55% das empresárias ouvidas não sabem vender B2B, apenas 20% negociam com multinacionais, 50% apontam a burocracia como um entrave para o relacionamento com as grandes empresas e 85% negociam apenas com pequenas empresas.

Disposta a diminuir esse gargalo, a Rede Mulher Empreendedora criou o programa RME Conecta que, em 2019, selecionou, qualificou e capacitou 23 empreendedoras em 2019 e está preparando novas turmas. “Nosso objetivo é capacitar as empreendedoras para os desafios do ambiente corporativo, para o funcionamento dos processos internos das áreas de compras, técnicas de negócios, vendas, B2B e planejamento financeiro”, afirma Fontes. Todas as 23 empresas certificadas têm 51% ou mais do negócio gerido por mulheres, são formalizadas e registram um faturamento anual acima de R$ 300 mil.

O RME Conecta também chama para a mesa de negociação representantes de grandes companhias, a fim de que conheçam novos possíveis fornecedores. E muitas estão realmente dispostas a renovar a lista, tendo nas empresas fundadas por mulheres um de seus focos. É o caso da Johnson & Johnson, que há mais de 20 anos iniciou um programa de Supplier Diversity & Inclusion. “Os objetivos do programa não estão relacionados à caridade”, afirma Marcos Domingues, líder do programa para a América Latina. “Nossa proposta é apoiar as comunidades em que estamos inseridos a fim de gerar empresas e aumentar seu poder econômico e, de fato, firmar parcerias com as empresas que possam prestar serviços de qualidade, inovadores, competitivos e que possam agregar valor à nossa cadeia de suprimentos.”

De acordo com o executivo, para as pessoas serem saudáveis, a sociedade também precisa ser. “Sociedades saudáveis são as que possuem igualdade de gênero e equidade para as minorias”, reforça. “Por isso, em nossos processos, procuramos sempre garantir que alguma empresa liderada por minoria participe. Nosso foco é garantir que tenham a oportunidade de participar. Feito isso, os processos de negociação correm normalmente.” Em 2018, pelo oitavo ano consecutivo, a Johnson & Johnson manteve-se como membro do Billion Dollar Roundtable (BDR), entidade que reúne 28 companhias que têm as práticas mais avançadas em supplier diversity, com o mínimo de US$ 1 bilhão em compras anuais de empresas estratégicas com liderança de minorias (mulheres, veteranos, LGBTQ+ e PCDs) e que sejam certificadas.

“Comprar de fornecedores que são minoria cria oportunidades para quem encontra barreiras no mercado, gera emprego e elimina a disparidade de renda”, diz Domingues. E não é só isso, traz também retorno financeiro. O manual Poder de Compra: Guia Corporativo de Compras Sensíveis ao Gênero, lançado em 2017 pela ONU Mulheres, destaca que 33% das grandes empresas têm mais retorno no custo das compras com um índice maior de diversidade de fornecedores; 34% garantem mais lucro ao diversificar sua base de fornecedores e estabelecer relações com negócios liderados por mulheres.

Ao criar e fortalecer relações com fornecedores mais diversos, revelam os estudos, as empresas desenvolvem competências únicas e específicas, capazes de diferenciá-las de seus concorrentes. Entre elas, flexibilidade e velocidade no atendimento, além de impactar na reputação das marcas. Margareth Goldenberg, gestora executiva do Movimento Mulher 360, que tem por missão o empoderamento feminino e a equidade de gênero no mundo corporativo, vai além. “A diversidade gera impactos concretos na atração de novos talentos, retenção de funcionários, melhoria de clima organizacional e de criatividade, ampliação da capacidade de compreensão das necessidades dos clientes”, afirma. “E isso se reflete na cadeia de fornecimento.”

Com 45% de mulheres em cargos de direção e 55% no nível de gerência, a P&G é uma das companhias globais que defende na prática os benefícios da adoção da diversidade na cadeia de fornecimento. Em países como Índia, Turquia, Nigéria, Reino Unido, México, África do Sul e Brasil, realiza há mais de dois anos o Projeto She2B, que visa aumentar o número de empresas fundadas e lideradas por mulheres na rede de supply chain. “Não se trata de dar preferência a um ou outro gênero, mas de garantir oportunidades e acesso iguais ao mercado”, declara Marjorie Brito Teixeira, gerente sênior de comunicação da P&G Brasil. “A companhia tem o compromisso de destinar US$ 100 milhões para investimentos em empresas fornecedoras de mulheres fora dos Estados Unidos.” 

Outra gigante internacional que vem investindo forte nessa linha é a Bayer. Desde 2016 nos Estados Unidos e há três anos também no Brasil, a multinacional conta com o Programa de Mentoria para Fornecedores de Diversidade, com 20 empresas participantes no País, entre elas fornecedores Bayer e do mercado. “A diversidade gera transformação e traz inovação, que se traduz em novas ideias, produtos e negócios com diferentes perspectivas e soluções mais completas”, afirma Marcella Santin, analista de gestão de Relacionamento com Fornecedores para a América do Sul da Bayer. 

Segundo a executiva, empresas dirigidas por mulheres são mais abertas a mudanças e se adaptam mais facilmente aos desafios. Além disso, apresentam maior engajamento, como forma de superar as adversidades para se sobreporem no mercado e na sociedade. “Embora as mulheres representem 51,5% da população brasileira, elas somam apenas 43,8% da força de trabalho”, diz. “Os números deixam clara a discrepância.” Em 2019, a Bayer fechou com 83% de empresas lideradas por mulheres no Spend de Diversidade, indicador que mensura os gastos efetivos com empresas de diversidade certificadas da WEConnect e pela Integrare, das quais é parceira.

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**FRANCHISING ABRE PORTAS**

Considerado uma porta de entrada para o universo do empreendedorismo para quem quer ter o próprio negócio correndo menos risco, o franchising aos poucos vai abrindo espaço para lideranças femininas e abrigando redes fundadas e geridas por mulheres. Em 2015, quando a Associação Brasileira de Franchising (ABF) realizou o estudo Liderança Feminina no Franchising, 46% das franqueadoras não tinham mulheres em cargos executivos e apenas 12% tinham liderança exclusivamente feminina. Cinco anos depois, 15% das 50 maiores redes têm como principal executiva uma mulher, 2% a mais que em 2018 e acima da média nacional, que, segundo estudo conduzido pela Talenses e pelo Insper, está na casa dos 13%. “Ainda estamos muito longe do ideal no equilíbrio na composição de gênero para os cargos de liderança nas redes de franquia”, admite Cristina Franco, membro do Conselho da ABF. “Mas já avançamos nessa direção, porque acreditamos que mulheres e homens trabalhando juntos somam expertises. São diferentes pontos de vista que se completam e promovem um saudável e ideal equilíbrio na gestão das empresas.”

Na contramão do mercado, a Kumon, microfranquia referência mundial em educação, tem 96% de mulheres na liderança de suas unidades no País. “As mulheres são mais detalhistas na hora de escolher uma franquia, valorizam o atendimento da rede na fase de pesquisa, o processo seletivo, as oportunidades de troca de conhecimento com outros franqueados e buscam um negócio que, além de retorno financeiro, traga realização profissional e pessoal”, diz Julia Shiroiwa, gerente de expansão. 

Colocando em prática o conceito de equidade dentro da franqueadora e na rede, a Sorridents, uma das maiores redes odontológicas da América Latina, não só é fundada e liderada por uma mulher, Carla Sarni, como tem 40% de mulheres entre seus cerca de 250 franqueados. “Hoje, velocidade e sensibilidade são atributos que fazem muita diferença nos negócios, e as mulheres costumam somar essas características”, afirma Gislene Soares Santos, diretora de operação e expansão. “Cada vez mais temos buscado fornecedores com esse perfil, o que tem elevado o número de mulheres na carteira.” O resultado, garante a executiva, é mais agilidade na solução das demandas, rapidez nas respostas e maior atenção aos detalhes que, muitas vezes, passam despercebidos ao olhar masculino. 

As vantagens da equidade de gênero e da diversidade na cadeia de supply chain, garantem os especialistas, são inúmeras; o que falta para esses benefícios se tornarem realidade é a mudança de pensamento. Está mais do que na hora de virar a chave.

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