Cultura organizacional, Estratégia e execução
4 min de leitura

Superando os legados de negócio e de mindset

Lembra-se das Leis de Larman? As organizações tendem a se otimizar para não mudar; então, você precisa fazer esforços extras para escapar dessa armadilha. Os exemplos e as boas práticas deste artigo vão ajudar
Especialista em transformações digitais e estratégias de dados & analytics, Norberto Tomasini atua como parceiro na NTT DATA Europe & LATAM e como conselheiro na Fundación Everis, definindo estratégias para futuras oportunidades de crescimento, ofertas de produtos e mercados a serem explorados.

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Empresas estabelecidas carregam legados que podem travar suas transformações. De um lado, há o legado de negócio – sistemas antigos, processos ultrapassados e modelos de negócio que já foram sucesso, mas agora são barrados pelos disruptores digitais. De outro, o legado de mindset – uma cultura arraigada e modos de pensar moldados por décadas de práticas bem-sucedidas, porém agora resistentes a novas ideias.

Juntos, esses legados podem dificultar inovações e ameaçar a relevância das organizações. Estudos mostram que a transformação digital não é apenas uma questão de tecnologia, mas sobretudo de pessoas e cultura. Mais de 70% das empresas fracassam em gerar valor com iniciativas de transformação e 62% apontam a cultura organizacional como o principal obstáculo.

Em outras palavras, a transformação digital é fácil; transformação de pessoas é que é difícil. E sem endereçar a mudança cultural, a transformação provavelmente falhará . Neste artigo, exploramos casos recentes de companhias que enfrentaram e superaram esses legados e reunimos insights acadêmicos e de consultorias conceituadas para orientar líderes em suas jornadas de mudança organizacional.

Legado de negócio versus legado de mindset

É crucial distinguir o legado de negócio do legado de mindset. O legado de negócio refere-se aos ativos e práticas herdadas do passado: infraestrutura tecnológica obsoleta, processos engessados, produtos e modelos de receita tradicionais. Já o legado de mindset diz respeito à mentalidade e cultura internas: valores, hábitos e crenças enraizadas que moldam “como as coisas são feitas por aqui”. Muitas vezes, esses aspectos se reforçam mutuamente – sistemas antiquados perpetuam práticas antigas, e vice-versa. Segundo especialistas, empresas tradicionais tendem a se acomodar onde sempre dominaram, longe da zona em que a nova batalha competitiva está ocorrendo . Assim, permanecem “felizes em continuar fazendo tudo do mesmo jeito de sempre”, subestimando o quão rápido o mundo lá fora mudou .

A diferença central é que o legado de negócio é algo externo (tecnologias, produtos, processos), passível de atualização, enquanto o legado de mindset é interno aos indivíduos e à organização – muito mais difícil de mudar . Líderes podem investir em novas plataformas ou reestruturar áreas, mas “pessoas não conseguem simplesmente ‘se consertar’” . Em uma entrevista ao site da McKinsey, a executiva Avid Larizadeh destacou que os elementos de legado (processos, TI e mindsets) se retroalimentam, mas “tudo começa pela mentalidade e pela cultura”, pois sem líderes e equipes abertos à mudança, a empresa permanecerá presa ao estado legado . Em suma, modernizar sistemas e modelos de negócio é inviável se a mentalidade predominante continuar presa ao passado.

O impacto do legado de mindset

Negligenciar o legado de mindset tem um custo comprovado. Consultorias e pesquisas acadêmicas indicam que a cultura pode fazer ou quebrar uma transformação. Um levantamento da Harvard Business Review Analytic Services com quase 700 executivos constatou que 86% acreditam que a transformação exige a combinação de cultura adequada, processos de negócio revistos e novas tecnologias – porém apenas 20% classificam suas estratégias de transformação como bem-sucedidas . A maioria, portanto, falha em obter os resultados esperados, muitas vezes por subestimar os aspectos humanos.

De fato, a proporção de empresas que alcançam performance financeira expressiva é cinco vezes maior entre aquelas que focaram em mudar a cultura, em comparação às que negligenciaram isso (90% versus 17%) . E o contraste fica ainda mais nítido no longo prazo: quase 80% das empresas que priorizaram a mudança cultural sustentaram desempenho forte ou revolucionário, enquanto nenhuma das que ignoraram a cultura obteve sucesso sustentado .Ou seja, transformações que endereçam o legado cultural multiplicam as chances de êxito.

Não surpreende, portanto, que “para muitas companhias legadas, a mudança de cultura seja o maior desafio da transformação digital” . Uma análise publicada na MIT Sloan Management Review mostra que empresas com décadas de história lutam para se tornar ágeis e inovadoras sem “trair” suas melhores práticas – mas precisam encarar a cultura como barreira número um a ser superada . Ignorar essa realidade é perigoso. Como alertam especialistas brasileiros, tentar “resolver problemas com a mesma mentalidade que os criou é impraticável” . Persistir nos modelos mentais antigos leva à obsolescência acelerada.

Apenas 16% das empresas listadas no S&P500 em 1957 ainda existiam em 2007, e projeções indicam que metade das atuais será substituída em uma década – reflexo de que novos entrantes ágeis superam incumbentes presos a legados. Em suma, cultura e mindset são frequentemente o fator decisivo entre organizações que se reinventam com sucesso e aquelas que ficam pelo caminho.

Casos recentes de superação de legados

Nada ilustra melhor esses pontos do que histórias reais de transformação. Nos últimos cinco anos, várias empresas tradicionais enfrentaram seus legados de negócio e mindset – algumas fracassando, outras obtendo resultados notáveis. A seguir, destacamos exemplos emblemáticos que oferecem lições valiosas.

Microsoft: da estagnação ao renascimento cultural

No início da década passada, a Microsoft era vista como um gigante do século 20 acomodado em seu monopólio de Windows. Sob a liderança de Satya Nadella (que assumiu como CEO em 2014), a empresa passou por um “about face” – uma guinada radical – alicerçada sobretudo em mudança cultural. Nadella diagnosticou que a Microsoft havia se tornado uma organização de “know-it-alls” (sabe-tudo) presa ao sucesso passado, em que silos e politicagem reinavam, sufocando a inovação. Inspirado pelo conceito de growth mindset da psicóloga Carol Dweck, ele promoveu uma cultura de aprendizado contínuo e humildade intelectual . O novo mantra foi virar uma empresa de “learn-it-alls” (aprendedores) em vez de sabe-tudos: segundo Nadella, “um aprendiz sempre supera o sabe-tudo a longo prazo” . Essa ênfase num “cultura de aprendizado” envolveu todos os 130 mil funcionários e tornou-se o pilar da transformação.

Culturalmente, a Microsoft adotou valores de colaboração, abertura e tolerância ao fracasso – uma ruptura com o estilo “agressivo e inflexível” herdado de Bill Gates e Steve Ballmer . Estruturalmente, Nadella reposicionou o negócio para o futuro: por exemplo, priorizando já em 2014 a então pequena plataforma de nuvem Azure (na época com faturamento irrisório de US$ 5 milhões) como aposta estratégica para substituir a enorme linha tradicional de servidores (US$ 20 bilhões).

Essa coragem de “matar o próprio legado” em prol do novo, combinada à mudança de mindset, recolocou a Microsoft na vanguarda. Em 2023, a empresa foi novamente celebrada por sua capacidade inovadora, entrando de vez em mercados como computação em nuvem e inteligência artificial. Observadores notam que a virada bem-sucedida foi, em essência, um deslocamento cultural conduzido por Nadella – redefinindo o propósito da companhia e fazendo até mesmo uma gigante de 40 anos “pensar como uma startup”. O caso Microsoft evidencia que transformação organizacional profunda começa pelas pessoas e pela mentalidade, viabilizando todas as demais mudanças estratégicas.

Levi Strauss & Co.: reinventando uma cultura de 168 anos

Fundada em 1853, a Levi’s é um ícone do varejo de moda com hábitos e tradições profundamente enraizados ao longo de 168 anos. Essa herança trouxe vantagens (marca forte, produtos consagrados), mas também criou resistências culturais significativas quando a empresa buscou sua transformação digital na era recente. Segundo Harmit Singh, CFO da Levi’s, a companhia entrou na jornada digital carregando crenças, processos e práticas muito sedimentadas pelo tempo. Inicialmente, como muitas organizações, a Levi’s via transformação digital apenas como adicionar tecnologia moderna ao negócio. Na prática, porém, aprenderam que era “muito mais uma jornada de remodelar a identidade, a cultura, os mindsets, a estrutura e os processos da empresa” do que simplesmente implementar novas ferramentas.

O grande teste veio com a pandemia de 2020: com lojas fechadas e mudanças abruptas no comportamento do consumidor, a Levi’s foi forçada a mudar rapidamente para sobreviver. Nessa pressão, a liderança percebeu que perfeccionismo e aversão a riscos – traços da cultura centenária – precisavam ser abandonados. Singh relata que uma das maiores barreiras foi superar o instinto de “fazer tudo perfeito”, típico do negócio de varejo tradicional, ao aplicar esse mesmo rigor à transformação digital. Em vez disso, a Levi’s teve de adotar o credo das startups: “testar, aprender, falhar rápido e seguir em frente”. Tornou-se aceitável errar e tentar de novo, contanto que no caminho se aprendesse e evoluísse. Essa mudança de mindset – focar no progresso, não na perfeição – foi fundamental para destravar iniciativas digitais que antes empacavam pela busca do plano ideal.

A Levi’s também trabalhou para desenvolver músculos de agilidade em uma empresa habituada a planejamento de longo prazo. Implementou práticas de desenvolvimento ágil, integração entre áreas e tomou decisões com base em dados em tempo real (por exemplo, ajustando estoques e ofertas conforme as vendas online durante a pandemia). Gradualmente, a mentalidade interna se tornou mais flexível e experimental.

Os líderes normalizaram o fracasso como parte do processo, comunicando que errar em piloto é melhor do que “errar por não tentar”. Ao mesmo tempo, respeitaram a essência da marca: “Não podemos simplesmente estalar os dedos e apagar o legado que fez da Levi’s o que ela é – nem deveríamos querer isso”, ressaltou a equipe, reconhecendo que certos valores e know-how deveriam ser preservados.

O balanço entre honrar sua história e ousar inovar permitiu à Levi’s não apenas atravessar a crise da covid-19, mas emergir dela mais digital, com crescimento nas vendas online e uma cultura interna mais adaptável. O aprendizado principal é que mesmo uma empresa secular pode romper o “legado mental”, desde que esteja disposta a questionar dogmas, aceitar imperfeições iniciais e aprender rápido no percurso.

DBS Bank: de banco tradicional a empresa tech

O DBS, maior banco de Cingapura, é outro caso celebrado de transformação bem-sucedida. Fundado em 1968, o DBS tinha a típica cultura de um banco estatal: conservadora, hierárquica e orientada a evitar riscos. Nos últimos anos, sob a liderança do CEO Piyush Gupta, o DBS embarcou numa estratégia agressiva de se tornar o “melhor banco digital do mundo”. Isso exigiu tanto modernização tecnológica quanto uma profunda reprogramação cultural. A própria identidade da empresa foi repensada: a diretoria concluiu que “não éramos apenas um banco, estávamos nos tornando uma empresa de tecnologia” – e precisávamos agir como tal.

Na prática, o DBS investiu pesado em infraestrutura digital (cloud, APIs, automação) e num ambicioso programa de mudança de mindset em todos os níveis. A transformação foi tratada como iniciativa de todos os 26 mil funcionários, não apenas dos times de TI. Design thinking e metodologias ágeis foram ensinados amplamente: praticamente todos os colaboradores passaram por workshops e desafios de criar aplicativos e soluções digitais, independentemente de seu cargo.

Essa abordagem democratizou a inovação e quebrou a ideia de que mudança é responsabilidade só da liderança ou de um departamento. “Lembramos a nós mesmos que não é só para os executivos do topo ou o pessoal de TI – é para todos”, explicou a CFO Chng Sok Hui. Além disso, o banco redefiniu seus processos a partir da perspectiva do cliente (customer journey), instilando um enfoque externo em lugar da visão interna tradicional.

Com o tempo, os resultados culturais se tornaram visíveis. A CFO relata que, ao olhar em retrospecto, “enxerga uma mudança de cultura incrível” ocorrida no DBS. A organização ficou muito mais orientada a dados e colaboração interdisciplinar, com menos silos entre TI e negócio. Por exemplo, para explorar ao máximo o valor dos dados, o banco treinou equipes em data analytics e enfatizou os benefícios dos novos sistemas, ciente de que os funcionários “estão confortáveis usando sistemas que funcionaram por anos” e não mudariam da noite para o dia sem apoio e clareza de propósito. Investiu-se em capacitação e em mostrar “o que ganha quem adota as novas ferramentas”, construindo assim uma cultura inovadora em torno da alfabetização de dados.

O comprometimento com pessoas e cultura compensou: o DBS alcançou destaque global, eleito “Melhor Banco do Mundo” por revistas como Euromoney e Global Finance em 2018, 2020 e 2021, muito graças à sua reputação de banco ágil e digital. Como sintetizou a McKinsey, o caso do DBS prova que mindsets e cultura são tão importantes quanto tecnologia para um banco orientado ao digital. Em outras palavras, o banco só se tornou realmente “digital até o núcleo” quando conseguiu evoluir a mentalidade de seus profissionais e práticas internas na mesma medida em que modernizou seus sistemas.

Boas práticas para superar legados

Os exemplos acima fornecem lições concretas de como enfrentar e superar os legados de negócio e de mindset. A seguir, resumimos algumas boas práticas extraídas desses casos e da literatura especializada, que podem guiar executivos em suas transformações organizacionais:

  • Liderança engajada e visão clara do topo. Transformações bem-sucedidas costumam começar com uma liderança determinada a mudar. O tom vem do CEO e da alta gestão, que devem articular uma visão convincente de mudança e exemplificar o novo mindset. Sem esse patrocínio inequívoco, a organização dificilmente sai do estado legada. Em muitas empresas, somente uma ameaça à sobrevivência ou uma ambição audaciosa vinda do topo quebra a inércia. Satya Nadella, por exemplo, inaugurou a nova cultura da Microsoft admitindo suas próprias falhas e modelando a mentalidade de aprendizado. Do mesmo modo, Piyush Gupta no DBS declarou que o banco precisava pensar como empresa de tecnologia e impulsionou iniciativas para inculcar essa mentalidade em todos. Líderes transformacionais comunicam urgência e propósito – deixando claro por que a mudança é necessária – e não hesitam em rever recompensas e estruturas para alinhar comportamentos. Estudos da McKinsey reforçam que “não pode haver hesitação” do topo: a agenda deve ser unificada e respaldada com recursos, ou os legados prevalecerão.
  • Cultura de aprendizagem, experimentação e tolerância ao erro. Para desmontar um legado de mindset, a organização precisa trocar o medo de falhar pela curiosidade e aprendizado contínuo. A mentalidade de “aprender sempre” deve ser incentivada – como no mantra “learn-it-all em vez de know-it-all” da Microsoft. Isso implica criar um ambiente seguro para inovação, no qual os funcionários sintam que podem experimentar sem punição em caso de fracasso. “Fail fast, fail forward” (falhe rápido, siga em frente) tornou-se o lema de muitas transformações digitais. A Levi’s, por exemplo, teve de aceitar imperfeições iniciais em seus projetos digitais e abrir mão do perfeccionismo para ganhar agilidade. Empresas que conseguem normalizar o fracasso construtivo colhem frutos: elas aprendem mais rápido e estimulam a criatividade das equipes. Adotar práticas ágeis – com ciclos curtos de teste e iteração – é uma forma eficaz de promover essa cultura. Porém, vale lembrar que mudar comportamentos arraigados leva tempo; é preciso reforçar continuamente os novos valores e talvez até celebrar histórias de tentativas que levaram a lições importantes, mesmo que não tenham sido bem-sucedidas de imediato.
  • Engajamento e capacitação das pessoas em todos os níveis. Transformação é, fundamentalmente, transformação de pessoas. Portanto, envolver a organização inteira no processo e investir em desenvolvimento de habilidades são ações indispensáveis. Quebrar silos internos e fomentar colaboração multifuncional ajuda a dissolver o legado de negócio (departamentos isolados, visão “cada um por si”) e o legado de mindset (“não é problema da minha área”). Uma recomendação frequente é formar redes de agentes da mudança: funcionários de várias áreas e níveis atuando como embaixadores da nova mentalidade. No DBS, a estratégia de fazer todos participarem – até desenvolvendo seus próprios protótipos de aplicativos – foi crítica para criar ownership e diminuir a resistência. Além disso, oferecer treinamentos, ferramentas e incentivos adequados demonstra comprometimento em ajudar as pessoas a evoluírem junto com a organização. Por exemplo, capacitar equipes em análise de dados e demonstrar como isso facilita seu trabalho foi como o DBS converteu funcionários céticos em entusiastas do uso de novas plataformas. Do mesmo modo, muitas empresas implementam programas de upskilling/reskilling em larga escala para atualizar competências digitais de sua força de trabalho. Engajar também significa comunicar de forma transparente durante toda a jornada, reconhecendo desafios e ouvindo o feedback dos colaboradores – assim, constrói-se confiança e alinhamento em torno da mudança.
  • Combate ao “status quo” e gestão da mudança intencional. Superar legados exige enfrentar a força do status quo. Lembre-se das Leis de Larman: organizações tendem a se otimizar para não mudar. Há sempre quem defenda “aqui isso não vai funcionar” ou busque adaptar toda nova ideia aos moldes antigos. Por isso, é preciso implementar um processo estruturado de gestão da mudança. Identifique logo as principais fontes de resistência – “campeões do passado” que temem perder poder, gestores apegados às antigas métricas, etc. – e trabalhe para envolvê-los ou, se necessário, realocar quem realmente não se adapta. Como colocou um especialista, muitas transformações falham por não mitigar o impacto emocional da mudança nos funcionários, levando a cinismo e sabotagem. Contrarie isso criando quick wins (vitórias rápidas) que demonstrem o valor da transformação e gerem entusiasmo. A literatura recomenda escolher projetos-piloto de alto impacto para começar – lighthouse projects que provem o conceito e sirvam de modelo. Paralelamente, comunique conquistas e reconheça publicamente indivíduos e equipes que incorporam o novo mindset, reforçando comportamentos desejados. Preparar-se para o “pior antes do melhor” também é sábio: Rosabeth Kanter lembra que mudanças costumam causar desconforto e queda inicial de desempenho, o que precisa ser abertamente reconhecido para manter todos comprometidos na travessia. Em resumo, nada pode ser deixado ao acaso – gerir ativamente as dimensões humana e cultural da transformação é tão importante quanto o projeto técnico ou estratégico em si.
  • Equilíbrio entre inovar e preservar o essencial do negócio. Por fim, uma boa prática é balancear a ruptura e a continuidade. Transformar não significa jogar fora tudo que a empresa sabe fazer. As organizações de sucesso conseguem identificar quais elementos do seu legado de negócio são valiosos e devem ser mantidos, enquanto inovam agressivamente em outras frentes. Este é um equilíbrio delicado: radical demais, você perde a identidade e possivelmente a fidelidade de clientes e funcionários; tímido demais, o legado continua travando o futuro. A recomendação é apoiar-se nos pontos fortes do legado para viabilizar o novo. Por exemplo, a Levi’s aproveitou a forte cultura de qualidade de produto e conhecimento do cliente, canalizando isso para suas novas iniciativas digitais – em vez de descartar essa expertise, ela foi combinada a insights de dados e metodologias ágeis. Já a Microsoft usou seu enorme talento técnico acumulado (os “know-it-alls”) e os desafiou a adotar o chapéu de aprendizes em novas áreas como cloud e IA, convertendo conhecimento existente em novas ofertas. Algumas empresas optam por criar estruturas paralelas: times ou unidades voltados à inovação, separados das operações legadas para ter liberdade (o chamado ambidestria organizacional). Essa pode ser uma estratégia eficaz para vencer a inércia inicial – como notou a McKinsey, às vezes é preciso lançar novos negócios fora da sombra do core – mas a longo prazo é importante que a cultura de inovação permeie também o core, evitando uma empresa dual. Em todos os casos, a alta direção deve constantemente recalibrar o ritmo da mudança, garantindo que a transformação avance firme, mas levando junto as pessoas e os atributos valiosos da organização. Como bem resumiu um articulista, “não queremos apagar o legado que nos fez quem somos; queremos construir sobre ele o futuro”.

Um enorme desafio

Superar legados de negócio e de mindset é, sem dúvida, um enorme desafio – mas é possível e, cada vez mais, imperativo. Os casos de Microsoft, Levi’s e DBS, assim como outros, provam que até organizações centenárias podem se reinventar quando há coragem para questionar pressupostos antigos e mobilizar pessoas em torno de uma nova visão.

Também fica claro que transformação organizacional é um processo holístico: requer alavancar tecnologia e mexer na cultura, renovar processos e remodelar mentalidades. Hard skills e soft skills caminham juntos. Consultorias de renome chegam a afirmar que cuidar da cultura pode multiplicar por cinco as chances de sucesso de uma transformação , enquanto ignorá-la praticamente condena o esforço ao fracasso.

Para os líderes, a mensagem é contundente: inovação sustentável depende de uma mudança profunda de mindset. É preciso combater ativamente a complacência trazida por legados de sucesso. Como disse uma vez um executivo, o maior risco é achar que “somos grandes demais para falhar” – a história de Kodak, Blockbuster e inúmeras outras está aí para lembrar que ninguém está a salvo da disrupção. Em contrapartida, empresas que encaram honestamente seus legados e os desafiam podem se reinventar com sucesso. Isso envolve, como vimos, liderança arrojada, cultura de aprendizagem, empoderamento de pessoas, gestão disciplinada da mudança e equilíbrio entre passado e futuro.

Em um mundo pós-pandemia de mudanças frenéticas, esses fatores se tornam ainda mais críticos. Pesquisa recente da Harvard com executivos globais mostrou que 95% veem a transformação digital ganhar importância crescente, e 70% relatam mudanças significativas nos últimos dois anos. Ou seja, a pressão para evoluir só aumenta. A boa notícia é que também acumulamos mais conhecimento sobre como evoluir. Organizações que criam uma “cultura de transformação” permanente conseguem não apenas resolver problemas teimosos que travam seus projetos, mas também construir vantagem competitiva duradoura.

Em última instância, transformar legados de negócio e mindset é um exercício de liderança e gestão de mudança em sua forma mais elevada. “As empresas são implicitamente otimizadas para evitar mudanças no status quo”, então transformar-se exige sacudir estruturas e desafiar convenções. Os executivos que obtêm sucesso nisso combinam visão estratégica com uma grande dose de gestão humana: inspiram confiança, fomentam um ambiente onde aprender e se adaptar é valorizado, e têm a disciplina de implementar os pilares culturais necessários para sustentar a inovação. Cultura come estratégia no café da manhã, já dizia Peter Drucker. No contexto das transformações digitais atuais, essa frase nunca foi tão relevante. Em suma, ao honrar o legado do passado, mas cultivar a mentalidade do futuro, líderes podem guiar suas empresas através da mudança disruptiva – e sair do outro lado mais fortes, relevantes e inovadoras do que nunca.

Para se aprofundar no tema:

  • Entrevista McKinsey – “How traditional companies can overcome legacy obstacles to business building”
  • MIT Sloan Management Review – “Building Digital-Ready Culture in Traditional Organizations”
  • Harvard Business Review Analytic Services – “Rethinking Digital Transformation” (2020)
  • Padurean, L. (MIT Sloan/Asia School of Business) – “Culture: key reason digital transformation fails”
  • Boston Consulting Group – “It’s Not a Digital Transformation Without a Digital Culture”
  • EximiaCo (Brasil) – “A dura realidade da transformação digital e da modernização de legado”
  • GeekWire – Satya Nadella interview on Microsoft culture
  • Future of Field Service – “If You’re Striving for Digital Transformation Perfection, You’re Doing it Wrong”
  • Harvard Business Review – “How Microsoft Became Innovative Again” (2023)
  • Harvard Business Review – “4 Lessons from Levi’s Digital Transformation” (Harmit Singh, 2022)
  • Entrevista Harvard/McKinsey – “Becoming more than a bank: Digital transformation at DBS”
  • Harvard Business Review – “The Legacy Company’s Guide to Innovation” (2024)
  • Harvard Business Review – “The Company Cultures That Help (or Hinder) Digital Transformation”
  • Business Chief Asia – “Why digital transformation is a people transformation” .

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