Carreira, Cultura organizacional, Gestão de pessoas, Liderança, Saúde mental

Um canteiro de olhos e ouvidos

A inteligência coletiva de que precisamos para navegar na incerteza é um animal arisco, que só faz ninho em ambiente seguro
É sócio da RIA, empresa especializada em construir segurança psicológica em equipes. Criador do PlayGrounded, a Ginástica do Humor, é jornalista (Folha de S.Paulo, Veja, Superinteressante e Vida Simples), foi sócio da consultoria Origami e consultor em branding. Ator e improvisador, integra o grupo Jogo da Cena.

Compartilhar:

Imagine uma empresa líder global de um dos negócios mais promissores em telecomunicações, com 40% do mercado mundial.

Escorada nesses resultados ridiculamente excelentes por anos, a alta liderança da empresa naturalmente se envaidece de sua competência em gerir o negócio. Aos poucos, o corpo de líderes se transforma em um clubinho coeso, de acesso restrito, cuja visão admirada raramente alguém desafia.

Questionamentos às escolhas estratégicas são recebidos com respostas desdenhosas para “focar na implementação”. Quem não consegue atender aos pedidos da liderança é tachado de “fracassado” e perde lugar na fila da promoção.

Aos poucos, os gerentes médios param de dar opinião. Questionar o status quo? Nem pensar. O barco passa a ser guiado à base de medo.

Isolada na direção, com olhos fixos no retrovisor que reflete seu sucesso do passado, a liderança ignora os sinais e não percebe as curvas que se aproximam. Despreza novas tecnologias promissoras, desdenha das novidades da concorrência.

O desfecho é óbvio. Estamos falando de tecnologia, afinal de contas. A concorrência lança uma inovação que muda o jogo. Os líderes demoram a perceber que seu vagão desprendeu-se da locomotiva do futuro. Sua defasagem levará anos para ser reconquistada. Quando os maus resultados se repetem por mais de um ciclo, os investidores percebem que a empresa está atolada no passado. As ações perdem valor.

Ainda confiante no sucesso pregresso da alta liderança, o conselho atende a seus pedidos de investimentos. Mas a cultura que concentra as decisões no topo não dá conta do novo desafio e da complexidade do cenário atual, que muda o tempo todo.

O plano estratégico tem a cara da década anterior: ciclos longos demais para um cenário tão inconstante e nenhum espaço para questionamentos. O foco, adivinhe, é na implementação.

Investimento alto, pouca receita. A empresa amarga seguidos prejuízos. Sua fatia do mercado é devorada em grandes nacos pela concorrência. Em cinco anos, praticamente desaparece. No ano seguinte, a divisão de telecomunicações da empresa, que até anteontem produzia os melhores itens do mercado, é vendida por uma pechincha.

### Até quando?

Já não é novidade para ninguém que vivemos um momento extremamente volátil e complexo. Também estamos carecas (eu estou, pelo menos) de saber que não há retorno para um passado previsível e seguro, se é que ele existiu. Para navegar nesse cenário, precisamos de todos os sensores ligados, precisamos da atenção de todos aos sinais. Precisamos de toda inteligência a que pudermos ter acesso.

Ditas assim, essas palavras soam como um disco riscado, figurinha do ano passado. Praticamente ninguém discorda.

Mas, sinceramente: com que frequência você vê seus líderes, pares ou colaboradores abrirem mão alegremente de suas opiniões ou visões para ouvirem honestamente as opiniões de outros? É comum que admitam que não sabem, não conhecem ou não têm muita competência em algum tema e peçam ajuda?

O momento pede que as respostas a essas perguntas sejam um “sim” sereno e até meio admirado pela questão, como se fosse um absurdo que alguém dissesse “não”. Mas minha experiência diz o contrário.

A inteligência coletiva de que tanto necessitamos é como um ecossistema delicado, composto de seres ariscos, que só fazem ninho e se reproduzem em ambientes seguros, onde vicejam o respeito à opinião alheia, a vulnerabilidade e o compromisso.

Em ambientes contaminados pela disputa de egos e pela autoproteção, a diversidade de ideias desaparece. Reina então solitário o líder que sabe todas as respostas, que não tem dúvidas, não erra e resiste ao diferente. As organizações que ainda dão ambiente propício a essa figura correm risco de extinção.

A liderança autoritária não convive bem com as incertezas. Para desentocá-la, vale lembrar constantemente que ninguém sabe todas as respostas de que precisamos. E que raramente os obstáculos do caminho podem ser vencidos reproduzindo o passado. Estamos em território desconhecido e nosso desafio é de aprendizagem. Essa consciência manterá os sabichões em seus lugares.

Uma confissão: eu ia perguntar também com que frequência você abre mão de suas opiniões, ouve os outros, admite falhas e pede ajuda. Mas achei desnecessário, porque é claro que você é diferente. Eu também acho que sou. O inferno sempre são os outros.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Organização

A difícil arte de premiar sem capitular

Desde Alfred Nobel, o ato de reconhecer os feitos dos seres humanos não é uma tarefa trivial, mas quando bem-feita costuma resultar em ganho reputacional para que premia e para quem é premiado

ESG
Adotar o 'Best Before' no Brasil pode reduzir o desperdício de alimentos, mas demanda conscientização e mudanças na cadeia logística para funcionar

Lucas Infante

4 min de leitura
Tecnologias exponenciais
No SXSW 2025, a robótica ganhou destaque como tecnologia transformadora, com aplicações que vão da saúde e criatividade à exploração espacial, mas ainda enfrenta desafios de escalabilidade e adaptação ao mundo real.

Renate Fuchs

6 min de leitura
Inovação
No SXSW 2025, Flavio Pripas, General Partner da Staged Ventures, reflete sobre IA como ferramenta para conexões humanas, inovação responsável e um futuro de abundância tecnológica.

Flávio Pripas

5 min de leitura
ESG
Home office + algoritmos = epidemia de solidão? Pesquisa Hibou revela que 57% dos brasileiros produzem mais em times multidisciplinares - no SXSW, Harvard e Deloitte apontam o caminho: reconexão intencional (5-3-1) e curiosidade vulnerável como antídotos para a atrofia social pós-Covid

Ligia Mello

6 min de leitura
Empreendedorismo
Em um mundo de incertezas, os conselhos de administração precisam ser estratégicos, transparentes e ágeis, atuando em parceria com CEOs para enfrentar desafios como ESG, governança de dados e dilemas éticos da IA

Sérgio Simões

6 min de leitura
Tecnologias exponenciais
Os cuidados necessários para o uso de IA vão muito além de dados e cada vez mais iremos precisar entender o real uso destas ferramentas para nos ajudar, e não dificultar nossa vida.

Eduardo Freire

7 min de leitura
Liderança
A Inteligência Artificial está transformando o mercado de trabalho, mas em vez de substituir humanos, deve ser vista como uma aliada que amplia competências e libera tempo para atividades criativas e estratégicas, valorizando a inteligência única do ser humano.

Jussara Dutra

4 min de leitura
Gestão de Pessoas
A história familiar molda silenciosamente as decisões dos líderes, influenciando desde a comunicação até a gestão de conflitos. Reconhecer esses padrões é essencial para criar lideranças mais conscientes e organizações mais saudáveis.

Vanda Lohn

5 min de leitura
Empreendedorismo
Afinal, o SXSW é um evento de quem vai, mas também de quem se permite aprender com ele de qualquer lugar do mundo – e, mais importante, transformar esses insights em ações que realmente façam sentido aqui no Brasil.

Dilma Campos

6 min de leitura
Uncategorized
O futuro das experiências de marca está na fusão entre nostalgia e inovação: 78% dos brasileiros têm memórias afetivas com campanhas (Bombril, Parmalat, Coca-Cola), mas resistem à IA (62% desconfiam) - o desafio é equilibrar personalização tecnológica com emoções coletivas que criam laços duradouros

Dilma Campos

7 min de leitura